No brilho do Arraial da Cidade
IVAN SARNEY
Sinto o cheiro da
pólvora queimada que o vento da noite espalha no arraial. O cheiro, no entanto,
não seria tudo se pudesse ser apartado do som, ora grave ora agudo, do estalido
das bombas e dos fogos de artifício que se queimam colorindo essas noites de junho,
tão íntimas de nossas vidas e de nossos destinos.
Impossível
estar nesses lugares, nessas noites de fascínio e magia, só com o nosso corpo
atual, com nossa alma contemporânea. Todo o acervo de nossa vida que já é
lembranças nos toma pelas mãos e nos conduz para realçar lugares, pessoas,
emoções e fatos que ficaram cristalizados no tempo, como referências essenciais
de nossa existência.
O
cheiro da pólvora queimada, por exemplo, é um laço, um elo que não se dissipa,
nem se dissolve com o passar dos anos. Ele é imutável na essência do seu odor e
no simbolismo de sua existência. E como é imutável, como faz ligação entre
tempos, no exato momento em que se desprende e exala, tem o dom de tornar
atuais e vivas, todas as lembranças que a ele se vincularam, no tempo.
A
lembrança de passar fogueira, nas noites de São João, é uma delas que me ocorre
agora. Sempre com a fogueira já apagando, consistindo em brasas, sem fogo e
labaredas. De mãos dadas, pulando o braseiro, firmava-se o compromisso de ser
compadre.
Mas
não quero, no brilho pleno destas noites de junho, deixar-me levar pelos
arraiais: do Ceprama, da Maria Aragão, do antigo IPEM, renascido; do Parque da
Vila Palmeira. Não quero deixar-me levar pelas lembranças de minha infância e
juventude, senão na exata medida que o som das matracas, dos pandeiros e dos
tambor-onça conseguem suscitar em mim, sem lamentar deliberadamente nada, sem
saudosismo algum.
Sem
saudosismo algum para poder deixar-me levar pelo encanto cromático, melódico,
coreográfico e estético do boi de Nina Rodrigues, o das mais belas e graciosas
índias; para deixar-me envolver pela poesia, pela riqueza de ritmos, pela
beleza e graciosidade do Boizinho Barrica, que tanto nos encanta e nos divulga
lá fora; para deixar-me enternecer com o brilho e a riqueza das toadas do Boi
de Axixá, de Pindaré, da Maioba, do Maracanã, da Madre de Deus, que são bois
tradicionais e exibem a excelência de seus cantadores e a riqueza de suas
vestes bordadas.
Os bois, esses boizinhos lindos que vão se multiplicando,
com o correr dos anos, são promessas que alguém fez ou faz a São João que
permanece dormindo durante todo o dia de seu aniversário, porque se ele
acordasse o mundo se acabaria segundo a crença cristã. Ivan Sarney
Os
turistas vieram. E aqui estão, entre nós, como amigos, como cidadãos, inclusive
de outras nacionalidades, curtindo nossas festas, com tudo aquilo de encantador
e mágico que elas possuem.
Eles
estão por toda parte, dando mais cor à nossa cidade e nos enchendo de alegria,
por estarem aqui. Serão eles e outros que aqui vierem que divulgarão, de forma
mais permanente e eficaz, o que temos de belo e diverso para mostrar aos que
nos visitam.
O
bom é sentir a cidade como nossa própria casa, sem teto e sem paredes que a
limitem. Sentindo a cidade assim, poderemos tratá-la melhor para que nela
possamos melhor exercer a parcela de nossa vida. Os que nos visitarem
compreenderão essa nossa relação com esse espaço de vida e a ele se integrarão,
colaborando pela preservá-lo melhor.
Como
é bom viver numa cidade onde somos reconhecidos e podemos reconhecer centenas
de pessoas que encontramos, no dia a dia. Assim vou pensando, enquanto percorro
o Arraial da Cidade, com meu amor, Janaína, e meu pequeno Caio que é miolo de
boi, há quatro anos, por decisão inteiramente sua, em perfeita sintonia com
nossa cultura e tradição. Como está belo e bem organizado, com excelente
estrutura para adultos e crianças, aquele local.
Percorro-o,
parando em barracas de palha, em perfeita comunhão com a noite e tudo o que
dela emana. E, ali, sinto o cheiro e o gosto de nossa comida tradicional, tão
farta nestas festas de junho: arroz de Maria Izabel; torta de camarão e cuxá,
vatapá e peixe frito.
No
Arraial da Cidade, sob a Coordenação do competente amigo, vereador e atual
Presidente da Câmara, Astro de Ogum, com apoio do vereador Roberto Rocha Júnior
e do amigo, Senador Roberto Rocha, curtimos a noite de São João, soltando fogos
e vendo queimar fogueira. Um arraial repleto de nossas tradições, sentindo o
espírito fraterno e solidário com que todos brincam essas festas, neste dia de
São João.
O
farto policiamento parece dispensável, para a alegria e a paz das pessoas que
cantam e dançam sob o ritmo dos bois, das quadrilhas, dos cocos, dos
tambor-de-crioula, e só querem brincar.
Esse
espírito fraterno e solidário está na alma de todos. Afinal, as festas de junho
têm caráter religioso também porque são festas devocionais: Santo Antônio, São
João, São Pedro, São Maçal.
Os
bois, esses boizinhos lindos que vão se multiplicando, com o correr dos anos,
são promessas que alguém fez ou faz a São João que permanece dormindo durante
todo o dia de seu aniversário, porque se ele acordasse o mundo se acabaria
segundo a crença cristã.
Como
são festas devocionais, as novenas, as ladainhas, são tradições que se mantêm
no aconchego das famílias, com bolo de tapioca, com canjica, com pamonhas, com
milho cozido e assado, com bolo de milho e macaxeira.
Nas
casas de muitas famílias acontecem as mais alegres e fraternas festas aos
Santos integrantes do ciclo de junho, que o povo festeja com devoção crescente.
Eles são protetores de famílias e habitam oratórios em nossas casas de seus
devotos, protegendo-nos em nossas vidas terrenas.
Que
brilhem os arraiais, as lembranças e nossas tradições. Amar a cidade é viver
nossa cultura. É preciso amar a cidade.
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