Boi de Encantado abre as portas do terreiro contra a intolerância no São João (*)

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Boi de Encantado abre as portas do terreiro contra a intolerância no São João (*)

Apresentações e ensaios dos bois de encantado
No Maranhão, a maior festa popular, o São João, ganha as ruas e as praças no mês de junho, e os espaços públicos ganham o nome de arraial ou de terreiro. Com a crescente mercantilização da maioria das manifestações folclóricas, movimento natural das dinâmicas culturais, os grupos de bumba meu boi têm adquirido novas estruturas, e a relação entre fé, devoção e festa nem sempre é premissa para se colocar um boi na rua.


O ciclo do boi começa e se encerra em terreiros. É uma promessa pessoal ou coletiva que impulsiona os brincantes a sair pela noite adentro batendo matracas, chacoalhando maracás, tocando pandeirões, soprando instrumentos, rocando tambores-onça, gingando o corpo e bailando em coreografias sincronizadas. Alguns dos brincantes entram em transe com a pulsação frenética que ecoa dentro de um grupo de bumba meu boi mais percussivo, e, quase sempre, o transe ou incorporação tem o viés espiritual, das relações de encantaria dos terreiros.

Os bois de encantado são exemplo dessa relação direta entre a festa e a espiritualidade. Quem comanda este tipo de boi – no caso, o amo ou cantador – é uma entidade vinculada a uma casa de culto de matriz africana ou afro-brasileira. A estrutura e organização do boi é a mesma de qualquer outro bumba meu boi, com matracas, pandeirões, miolos, índias, bois bordados com muito zelo e cuidado, e, claro, toadas compostas pela entidade, o que garante à experiência de quem prestigia as apresentações uma energia mais ritualística.

Boi dos Papudos

Há mais de quatro anos, dentro da casa de culto mina-jeje, o terreiro Ile Axé Onilé Portal de Encantaria, o Boi dos Papudos surgiu de uma promessa para São João (o santo católico) feita por uma “encantada”, Maria Padilha, e regida por outra, Teresa Légua Bogi Buá.

Encantados são espíritos que viveram na Terra e desapareceram misteriosamente, sem que fosse encontrado o corpo. A pesquisadora Mundicarmo Ferreti esclarece melhor o termo no artigo “Encantados e Encantarias no Folclore Brasileiro”, de 2008. Para ela, encantados são “pessoas que viveram na Terra e desapareceram misteriosamente, aparentemente vencendo a morte, e que acredita-se que passaram a viver em outro plano, como o Rei Sebastião".

Um dos objetivos principais da encantada é homenagear os caboclos e orixás, a espiritualidade de matriz africana, cumprindo o mesmo ciclo festivo dos outros bois, com batizado e morte, além de homenagens a outros cantadores.

O grupo reúne integrantes do terreiro e da comunidade no bairro Vila Nova, ao longo de mais de seis meses entre ensaios, composição de toadas, confecção e bordado do boi, produção dos pandeiros, sem qualquer tipo de financiamento externo. O boi mantém o processo de produção mais artesanal e orgânico possível, sempre orientados pela entidade espiritual, a cabocla Teresa Légua ou Teresinha de Jesus.

Manifestada no líder espiritual da casa, o homem que adquire a voz e postura corporal da cabocla, o boi tem essa característica diferenciada, de ter como amo uma entidade feminina, num espaço onde há poucas vozes femininas entoando toadas e liderando grupo de bumba meu boi. Nas apresentações, a voz firme e cheia de identidade surpreende. As toadas são feitas de improviso, como um desafio, de forma totalmente intuitiva.

O Boi dos Papudos não é o único existente no Maranhão. A falta de visibilidade e de espaço nos terreiros formais e que integram a programação oficial dos governos municipal e estadual deixam esta manifestação cultural reclusa nas casas de culto ou nos barracões dos terreiros afro-brasileiros.
E, por suas características tão genuínas, o boi de encantado mantém a história e a herança cultural da comunidade ancestral presente nos terreiros de Mina, Candomblé, Umbanda, Terecô, com seus caboclos, vodunsis, pretos velhos, erês, orixás e que estão integrados nas matrizes do que se compreende como cultura africana ou afro-brasileira, patrimônio imaterial brasileiro, assim como o tambor de crioula, a capoeira, entre outros.

Herança africana
Como pesquisadora em visitas a terras de quilombolas, frequentadora e adepta da religião de matriz africana, pude compreender melhor esse universo de encantarias e o quanto parte de nossas tradições e culturas são desconhecidas, sobretudo nas comunidades negras.

Vale salientar que, mais que uma manifestação cultural, o Boi dos Papudos, assim como os demais bois de encantados que temos no estado, é também um ator social na difusão da cultura local, da integração entre as comunidades e, sobretudo, na atualidade, como ferramenta de combate à intolerância religiosa, por tratar-se de um terreiro de mina, ser um boi de encantados, com um grupo cultural regido por uma entidade.

Difícil não se emocionar ao ver os integrantes da comunidade no trabalho coletivo e entusiasmo em colocar o boi para brincar nos terreiros, sem expectativas de natureza comercial ou espetacularizada, entregues à alegria e devoção.

Por tudo isso, salve os bois de caboclos, salve Teresa Légua e toda a riqueza ancestral e nossa que ela transmite e difunde com seu cantar. Salve a cultura maranhense e os muitos cantadores e bois que lutam para preservar sua tradição, seu patrimônio cultural, sua raiz, seu guarnicê!!!

(* ) Milena Reis, mestre e doutoranda em Gestão Integrada de Território pela UTAD de Portugal


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