Escritor relembra causos de São Luís em crônica inspirada na cidade
Joaquim Itapary - Caderno Alternativo
É
fato: na breve ladeira do cine Éden, o senhor Francisco Soler, galego de
Pontevedra, Espanha, mantinha pensão e casa de pasto num sobrado de quatro
janelas. Para aumentar os ganhos, passou a oferecer serviços de lavanderia. E
anunciou, em tabuleta sobre a porta: AQUI LAVA E ENGOMA
Com dois dias, a um quarto para as 12 horas, velho cliente da
pensão deu com a novidade anunciada. Leu, tirou o chapéu, enxugou a calva com o
lenço, subiu os degraus do corredor sobraçando farto maço de papéis e, como de
costume, pôs chapéu na chapeleira à porta do meio, deitou os papéis sobre o
aparador e entrou para a varanda fresca e iluminada pela luz coada no saguão.
Sentado em uma espreguiçadeira de lona, muniu o fornilho do cachimbo, fez o
fogo, tomou o jornal e pôs-se a ler as notícias do dia, enquanto aguardava o
serviço do almoço na comprida mesa, com doze pratos e talheres, na qual
pastavam todos os comensais.
Estava assim, com seu pito a fumegar, absorto na leitura do
diário, quando Francisco, o obeso e sempre atarefado pensioneiro, irrompendo na
varanda, vara o silêncio com sua voz atenorada, sibilante, e cumprimenta o
cliente num português com perceptível sotaque castelhano:
⁃ Bons
dias, senhor professor Teogônio, como está a vossa excelência? Boas novidades
no diário?
⁃ Bom
dia, senhor Soler! Retribuiu o Dr Teogônio. E acrescentou: - No diário, quase
nada de novo. A não ser a estadia do Poconé e do Itanagé em nosso porto. Disse
e baixou o jornal ao colo para continuar em tom inalterado, à mesma meia voz: -
Mas, novidade mesmo, nesta cidade pasmada, é a sua tabuleta ofertando serviços
novos. Mal fechou o parágrafo verbal, o professor, cachimbo entre os dedos,
ouviu a explicação dada por seu untuoso caseiro:
⁃ Sabe
a vossa excelência, senhor mestre, Dr .Teogônio, como os tempos estão difíceis;
a frequência de hóspedes e comensais a cada dia mais espaçada e os preços dos
gêneros pela hora da morte. Um caso sério! O professor e as duas velhas gêmeas
Celina e Celeste são os hóspedes permanentes que me restam. Entonces, para
remediar a situação pecuniária, depois de ouvir a minha senhora, resolvi-me a
oferecer ao público serviços de lavagem e engoma de roupas. Disse e arriscou-se
a pedir a opinião do doutor sobre a sua iniciativa empresarial:
- O que acha vossa excelência sobre esta minha ideia?
- Meu caro amigo, senhor Francisco - também chamado de Paco por
sua esposa, a dona Carmem, trigueira e ainda carnuda andaluz, que superintendia
os serviços da casa -, respondeu o mestre Teogônio Tavares de Alencar, ao tempo
em que se levantava da preguiceira de lona: - A sua ideia pode até ser boa, mas
o anúncio na tabuleta é péssimo! Um horror, em verdade! Deus que me livre de
lê-lo, outra vez. Mata-me de vergonha, senhor Soler!
⁃ Como
assim, senhor professor? Indagou Paco, com visível espanto, a esticar com os polegares
as tiras dos suspensórios das largas calças, em caxemira fuveira.
⁃
Trata-se do seguinte, meu caro senhor Soler, aquele escrito lá na placa sobre o
portal está inteiramente errado. Preste bem atenção ao que lhe vou dizer: O
senhor escreveu na tabuleta: Aqui lava e engoma!
⁃ Pois
então, senhor doutor? Aqui lava e engoma, está errado, Dr Teó ?. Atalhou o
espanhol.
⁃ Está,
amigo Francisco! Esclareceu de pronto o Dr Teogônio, com sua habitual paciência
de já provecto professor de meninos no Atheneu de Teixeira Mendes :
⁃ Ficou
faltando o pronome SE, senhor Francisco, para que a frase obedeça às regras do
vernáculo.
Retire a plaqueta e mande consertar o erro. Ponha o SE. Nesta terra de letrados
a gente não
pode facilitar. Escreveu errado, uma vez que seja, adeus reputação, senhor
Francisco! Adeus, freguesia! É a desmoralização eterna, a irremediável
bancarrota moral e comercial.
Comovido, o pensioneiro tomou em suas mãos gordas e suadas a
descarnada mão do Dr. Teogônio, de nodosos dedos artríticos, e agradeceu ao
mestre. Então, dirigiu-se à cozinha onde contou à dona Carmem o ocorrido na
varanda. De regresso, pegou a pequena escada de madeira encostada ao comprido
da parede do saguão, por entre jarrinhos de avencas e margaridinhas, e, sem
mais tardança, retirou da face da pensão aquela nódoa vernacular, temeroso da
cabal ruína empresarial e pessoal.
Logo após o almoço, Francisco pegou a Rua Grande, desceu a
ladeira do Beco de Quebra-Costas rumo à Praia Grande, e tratou de mandar que o
mesmo oficial lhe fizesse nova tabuleta, agora sim, em língua culta, conforme
ensinado, a bom tempo, pelo sapiente senhor doutor Teogônio Tavares Taveira,
seu mais antigo cliente, homem educado em O Porto, Portugal, segundo rígidos
padrões de ensino dos colégios de jesuítas. Sobretudo, cliente pontualíssimo no
resgate dos valores mensais de alimentação e pousada, sem jamais haver entrado
em mora por um dia sequer de tão dilatada e pacífica hospedagem.
O certo é que três dias passados, entre papéis escardeados pela
morna brisa rasteira, chapéu e cachimbo caídos ao lado, o corpo inerte e lívido
do velho Mestre Teogônio Tavares de Alencar seria recolhido à porta da pensão
na qual residira por mais de vinte anos. Sobre o portal da entrada onde jazia o
octogenário professor de tantas gerações, que ainda novo deixara os longínquos
sertões de Pastos Bons, onde nascera, nova tabuleta, bem maior que a anterior,
anunciava em grandes letras escarlates:
AQUI
SE LAVA E SE ENGOMA!
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