NAURO MACHADO E A POÉTICA DO DUPLO
Parindo o Infinito
ANTONIO AÍLTON
Para quem quer amadurecer poeticamente,
estabelecer uma relação de admiração por um grande poeta, e de certa intimidade
com sua poesia, pode resultar em um
risco: o risco de assimilar para si os modos de dizer, o estilo, a sintaxe e
até vocábulos, vestígios do outro. Foi o que aconteceu, se prestarmos bem
atenção, a alguns de toda uma geração de novos poetas leitores da poesia ao
mesmo tempo vigorosa e visceral de Nauro Machado. Isso não é necessariamente
ruim, desde que cada um encontre, depois, sua “dicção”. Nem se deve excluir,
por isso, a leitura justamente daqueles grandes que admiramos, afinal todos
temos as nossas referências.
Isso para assumir, com inteira tranquilidade, minha
admiração por esse poeta, sua profícua obra e sua poesia. Nauro, sua força e
sua poesia são inseparáveis dos meus círculos de poetas amigos e conjuntamente
leitores. São inseparáveis de uma atmosfera cultural em que ainda pude
inserir-me; inseparáveis de São Luís do Maranhão (a Província do exílio do
poeta), do imaginário e da memória desta cidade, com seus becos e crepúsculos
pungentes – agora derruídos em abandono, esquecidos e vandalizados, em meio à
mais recente onda de violência e marginalização, de opção pela maquiagem, pela
futilidade imbecil e pelo consumismo espetacular e hedonista, caminho
evidentemente sem volta.
Daí ter dedicado
alguns trabalhos ensaísticos ou acadêmicos a essa poesia, dos quais me orgulho,
particularmente de minha monografia acadêmica Humanologia do Eterno Empenho: conflito e movimento trágicos em A
Travessia do Ródano, de Nauro Machado, que recebeu o Prêmio Cidade de São
Luís, em 2003, e do breve artigo ensaístico publicado no GUESA*, Nauro,
O Centro, além de um artigo acadêmico apresentado no V Seminário
Nacional de Literatura e Cultura (SENALIC), de Aracaju, A Travessia dos
infernos patêmicos na Trilogia
Dantesca de Nauro Machado**. Foi inevitável falar, nesse
conjunto de trabalhos, de uma tragicidade do mundo que essa poesia revela e
atravessa: pathos como dor, afecção,
sofrimento existencial construído sobre o sujeito, na configuração do sujeito poético
como anátema, na obra de Nauro.
Acentuo, portanto, o foco dessa poesia na
construção de uma função-espelho que recobre o canto, a imagética, a forma, a
temática, que incide sobre o sujeito poético como cindido, fissurado,
contraditório e contrariado pela imagem de uma alteridade. Tem-se, aí, a construção
de um alter[outro]-ego, heterogêneo: seja em si mesmo, seja entre si mesmo, seja
frente o espaço e à sociedade que o cerca. Mas é sobretudo a constituição de um
pathos trágico que tem como
fundamento a angústia da própria cisão sentida pelo
sujeito e que precisa construir uma habitação possível do “si” com o “mesmo”, nos
conflitos que aparecem ora em imprecação, escancarados, ora sorrateiros,
intrometendo-se desde as fissuras mais sombrias e insuspeitas, numa autêntica
poética do duplo.
O duplo é a
imagem especular do sujeito cindido, conforme explica Pierre Brunel (2005): é
“aquele que caminha ao lado”, “companheiro de estrada”, “eu – o outro”, “eu –
dois em um”, “eu – o mesmo”, “a homonímia ou a semelhança, a proximidade
estranha assinalada pelo “eu” que levanta a questão da identidade”.
Conforme exponho nos textos mencionados, desde
aquele antológico (e ontológico) poema O
Parto, de Campo sem Base (1958), aos cantos da Trilogia Dantesca (2008),
o poeta é apresentado/representado na poesia como o “inquilino meeiro”, que
compartilha o sujeito em conflito e confronto com o “homem”, com o “eu
cidadão”, que é condenado pelo “poeta” a um sacerdócio visto como improdutivo
pela sociedade (“improdutividade” que, na verdade, não passa de fruto da ignorância, da desvalorização e da
indiferença social). O sujeito em sua carga assume, então, a condição de expurgo: o nadificado, o solitário, o exilado.
Mas como também foi dito, é a poesia que fica,
como linguagem, como lugar do ser, e eleva o homem: é o produto desse poeta anátema
o que permanece, sempre renovável, sempre de novo. Abre-se, então a
possibilidade de um quase Yin-Yang na mítica do poeta, melhor dizendo, na perspectiva da dor trágica, seja como “rio
pútrido”, Rodano ou Estige; seja na
condição sisífica de empurrar a pedra montanha acima, para o eterno recomeço;
seja como mar renovável, a parir-se, a buscar-se continuamente:
E pelo mar renovado
apesar de além ser findo
findando e após começado
e a se afundar, de novo indo
como um submarino nado
que pelo fim vai subindo.
(Trindade
Dantesca, 2008, p. 11)
Cabe
encerrar esta breve lembrança aos 80 anos do poeta Nauro Machado trazendo o que
escrevi em outro texto:
Essa poesia,
mediante a conjunção conflituosa e a linguagem apostrófica-imprecativa torna-se
o próprio vivido pelo homem, poeticamente desdobrado (ou representado).
O que nos
corresponde apresenta-se então, nessa poética, como o compartilhamento de uma tragicidade existencial por via do
lírico, é dor que sentimos com aquele “que deveras sente”, porque o
representado é dado como “apresentado”, é dado como espetáculo da ironia do
vivido (do existencial), não do fingido: agora, aqui, no território da dor
partilhada, na paixão re-velada de nossa própria condição, de onde, das
conjurações dos demônios e das sombras, resgatamos, com o poeta, nossos próprios
infinitos.
Antonio Aílton: Poeta, Doutorando em Teoria da
Literatura pela UFPE
_____________
Para conferir os artigos mencionados, veja:
*Nauro, o Centro:
SUPLEMENTO CULTURAL & LITERÁRIO JP GUESA ERRANTE, ano VII, n.
197, p. 3, 11 fev. 2009 (ou ANUÁRIO GUESA n. 7, p. 234, 2009).
**A Travessia dos
infernos patêmicos aa Trilogia
Dantesca de Nauro Machado:
http://200.17.141.110/senalic/V_senalic/textos_VSENALIC/Antonio_Ailton.pdf
(ou busque anais do V SENALIC, textos completos)
Box:
(Um inédito de NAURO MACHADO)
DOIS NUM SÓ
Cascavel guardiã deste jardim
Na flor carnívora de céu nenhum,
Minha mão escreve seu último poema
Nos venenosos pés do pensamento:
No filho, cobra amada pelo pai,
Dois tornados num, como a cabeça
De uma serpente que se faz em duas,
Criando um corpo que não quer morrer,
Mortais nós somos,filho, embora a morte
Vencida tombe pelo nosso bote,
Chegando a um Deus em cujo veneno
Apenas viva nosso eterno amém.
Foto: No café do Riba
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