O profético CAMPO SEM BASE
ALBERICO CARNEIRO
De fato, Ezra Pound,
com lucidez, experiência e coragem, afirma em A Arte da Poesia:
“Claro que, entre os
dezesseis e os vinte e três anos, quase toda gente verseja em maior ou menor
proporção. As emoções são novas e, para seu dono, interessantes e não há muita
Inteligência ou personalidade para pôr em ação. À medida que o homem, que sua
inteligência se transforma numa máquina cada vez mais pesada, numa estrutura
dia a dia mais complicada, faz-se necessária uma voltagem cada vez mais alta de
energia emocional para pô-la em movimento harmonioso. Decerto que as emoções se
vão tornando cada vez mais vigorosas, à medida que o homem vigoroso amadurece.
No caso de Guido, sua obra de mais força ele no-la deu aos cinqüenta anos.
Poesia de maior importância tem sido plasmada por homens de mais de trinta
anos.
Dizer que “o poeta lírico deveria
morrer aos trinta anos” é simplesmente dizer que a natureza emocional raramente
sobrevive a essa idade ou que, de qualquer forma, se avassala e torna-se
incapaz de pôr em ação a totalidade do homem. Evidentemente, esta é uma
generalização e, como tal, inexata.”*
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*POUND, Ezra. A arte da
poesia [ensaios escolhidos]; tradução de Heloysa de Lima Dantas e José Paulo
Paes. São Paulo: CULTRIX, Ed. Da Universidade de São Paulo, 11976, p. 70-71
Nauro Machado vive entre 02 de agosto de 1935 e 2015, ano que
dá continuidade a sua trajetória de homem e poeta. Portanto nasceu e cresceu
numa época de demonização do poema tradicional, de demolição de estruturas
consagradas milenarmente, passando pela liquefação pós-moderna. Sobreviveu às
mudanças, criando suas próprias mudanças com uma consciência crítica profética,
porquanto além do seu tempo. E, ao completar 80 anos de nascimento biológico,
sabe que do ponto de vista literário se autogerou e autogestou em 1958, quando
nasce de si mesmo.
Sobrevivente da demolição pós Semana de Arte Moderna,
realizada em São Paulo, em 1922, e do liquidificador pós-modernista da
desconstrução e apropriação por um viés de ponto de vista irônico e
contraditório ou minimalista, da segunda metade do século XX, manteve-se sempre
ao largo dos modismos transitórios tipo poesia práxis, concretismo, poesia
beat et caetera.
Aos 23 anos de idade, em 1958, Nauro Machado já tinha a
convicção plena de que era ainda criatura em vias de tornar-se criador, portanto
de que não estava ainda pronto como poeta. Isto foi um excelente sinal ou
vaticínio. Confiram esta voz poética profética:
“Meu corpo está
completo, o homem – não o poeta.”
A seguir vem a determinação pragmática ou existencialista de
uma consciência lúcida que, embora soe como uma premonição, é mesmo uma
consciência autêntica, uma certeza sobre sua verdadeira vocação e uma
predisposição radical para pô-la em prática, predispondo-se a oferecer-se ao
processo de sacrifício do homem, para que nasça dos destroços dele o poeta:
“Mas eu quero e é necessário
que me sofra e me solidifique em poeta,”
Os dois
versos seguintes trazem a voz de um poeta que descobre a miséria literária que
há no caminho dos que optam pelas aparências. Sabe que a purgação, embora seja
o mais difícil, é o melhor caminho. E decide, então, que é melhor anular o
homem, para que o plasma ou sopro de vida possa ser aprimorado:
“que destrua desde já o supérfluo e o
ilusório
e me alucine na essência de mim e das coisas,”
Aqui, experiência de alucinar-se na essência de si
mesmo e das coisas radica o momento do processo de morrer, não para tornar-se
um homem novo, senão para que haja o trânsito da metamorfose de autogeração,
autogestação e parto em si mesmo da criatura para o criador ou do homem em
poeta, esse ser incorpóreo e intangível como a alma.
O que vem depois é uma consciência
crítica precoce do que significa tornar-se poeta:
“para depois, feliz ou sofrido, mas
verdadeiro,
trazer-me à tona do poema”
Sim,
“trazer-me à tona do poema”, quer dizer, fora dele, para o lugar ou espaço da
poesia, que é exterior, extrínseco ao poema, porquanto intangível ou invisível.
Além do mais, o poeta tem a consciência plena de que só é verdadeiro o que tem
a marca da autenticidade. Só assim poderá vir à tona do poema:
“com um grito de alarma e de alarde:”
O poeta está
convicto de que sua missão é ser portador de uma mensagem ou notícia nada
agradável que está embutida em seu “grito de alarma”. Aí o poeta é como quem
tem que se transformar num Ganso do Capitólio, anunciador da iminência da
guerra ou do combate mortal:
“ser poeta é
duro e dura
e consome
toda
uma
existência.”
Com essas
palavras premonitórias ou proféticas, como se vindas de um oráculo, o poeta
Nauro Machado encerra o poema, publicado em 1958, quando tinha 23 anos de
idade.
Aqui e ao final, está revelado, na
prática, que a essência do poema escrito há 57 anos atrás se tornou realidade
em plenitude. A profecia autobiográfica premonitória se cumpre. Homem e poeta
se fundiram numa só persona, um extensão do outro. Sim, a profecia se cumpre e
homem e poeta vivem. E o homem sobrevive em si e no poema, consolidado e
consubstanciado, “alucinado na essência
de si e das coisas”. O homem aos 80 anos e o poeta em linha atemporal, no
tempo mental do fluxo de sua memória de bebê. Parabéns ao homem e ao poeta
Nauro Machado. Cinquenta e sete anos de poema e poesia que condensam séculos.
Amém
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