As poéticas sandálias de um Doutor

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As poéticas sandálias de um Doutor


Por Ivan Pessoa*

Nada esvazia mais a vida de sentido, que as palavras que jamais são ditas. Quando São João Batista é interrogado pelos sacerdotes judeus acerca de sua provável condição de Cristo, sua resposta é: “Ele é aquele que vem depois de mim, cujas correias das sandálias não sou digno de desamarrar.” (João - 1:27). Ora, em proporção, reconhecer seu próprio limite, e em seguida, valorizá-lo em alguém que porventura o supera, é, para qualquer indivíduo minimamente bem resolvido, um atestado de sabedoria e humildade, constatáveis - por exemplo - nas bíblicas palavras de Goethe: “Produziram todas as nações do mundo um dramaturgo à altura de apresentar a Eurípedes as suas sandálias?”. Pode um povo permanecer sem valorizar os limites de suas próprias sandálias, aos pés de sua própria pequenez ou maturidade, sem os quais nem mesmo uma medida de sua grandeza é dimensionável? Rastreando-a, desde as grandes e imorredouras civilizações, se pode observar que a própria conservação de um povo é proporcional ao reconhecimento de seus grandes homens, nem que seja à posteridade ou por estrangeiros, haja vista, o que anotou o francês, visconde de Melchior de Vogué, em 1884, ao execrado e marginalizado russo, Dostoievski: “É um homem enorme (...). Taine me dizia, há alguns dias, que os senhores Zola, Daudet, De Gouncourt e consócio não são dignos de desatar as sandálias desse homem (...).”. Portanto, a possibilidade de ser reconhecido é consequência do humilde desprendimento de alguém igualmente grandioso, capaz de externar, nem que seja por um gesto de nobreza, a medida da extraordinariedade.


Em pleno ano de 2015, ou seja, no mesmo período em que completa 80 anos, eis que o maior poeta vivo de São Luís - Nauro Machado - é, enfim, reconhecido por aquela que é a maior Instituição de Ensino Superior do Maranhão, a Ufma, ocasião em que o título meritório de Doutor Honoris Causa lhe será concedido. Por oportuno, vale considerar que a iniciativa começara a surgir, desde uma viagem que fizemos ao município de Balsas em visita à Ufma daquele campus: eu, o Magnífico Reitor da Ufma, Professor Doutor Natalino Salgado e o também Professor, João de Deus Mendes da Silva. Na ocasião sugeri, despreocupadamente, que a Universidade precisava reconhecer e atestar - de um modo simbólico - o valor do já consagrado poeta Nauro Machado. De súbito, o Reitor ponderou sem arrodeios: “- Escreva uma justificativa.”. Dimensionando a precisão e o sentido daquelas palavras, compartilhei com um ex-aluno do curso de filosofia, e igualmente literato, Adonay Ramos, a necessidade de ambos escrevermos a tal justificativa, de modo que assim fizemos. Em menos de cinco dias, tendo em mãos o escrito entusiasmado do poeta Adonay, dediquei algumas horas para ajustá-lo dentro de um enfoque eminentemente formal, e que, com algum apelo estético, subsumisse a formalidade exigida pelo regimento da Universidade com a respectiva necessidade de referendar literariamente o agraciado. Na perspectiva de reconhecer a grandeza daquele gesto, identificável desde a acolhida incondicional do Magnífico Reitor Natalino Salgado, além do auxílio pontual do Professor João de Deus; passando pela prestativa ajuda de Adonay Ramos, cujo texto inicial desencadeou a exitosa propositura encaminhada e unanimemente aceita pelo Conselho Superior da Ufma, é que, em conjunto, fomos capazes de conceder ao poeta Nauro Machado, aquela que é a medida acadêmica de seu prestígio intelectual, em uma cidade que por vezes o desconhece orgulhosamente. Ciente de que jamais conseguiria desamarrar-lhe solitariamente as sandálias, reparando a vaidade provinciana daqueles que se supõem à sua altura: sem obra ou mesmo mérito, é que reconheço humildemente todos aqueles que me ajudaram em tal iniciativa, de modo que, na perspectiva de brindar os entusiastas de sua obra, tanto quanto presentear o poeta, e agora Doutor Nauro Machado, cedo – parcialmente, afinal circulará por completo em uma próxima edição deste Suplemento – o resultado da vitoriosa justificativa. Meus parabéns, grande Nauro!


Todos os críticos de sua obra estão de acordo, em relação ao fato de que se trata de um poeta extraordinariamente incomum, um desses artistas - inusitados, e igualmente acossados pelas circunstâncias provincianas de seu tempo - que surgem por uma necessidade de compreensão estética superiormente inalcançada. Tão grande é sua expressiva capacidade intelectual, perpassável não apenas em seus livros, mas no diálogo mais informal que, de longe, sua presença literária se torna remissível àquilo que a ensaísta mexicana Rosa Maria Philips escreveu sobre a obra de Dostoievski: "uma espécie de epopeia do dilema." Pontuar o epos deste dilema universalmente escrito pela tradição, entrevisto e renovado em meio à dor e o sofrimento; o tempo e a eternidade; a província e o centro, eis o que consagra Nauro Machado ao panteão da verdadeira poesia. Portanto, reconhecê-lo à altura dos maiores méritos que as Letras asseguram a um homem e cultor do intelecto, que não deve ser esquecido - sob pena de comprometer a cidade e sua faina poética, eis, outrossim, o propósito deste título. Acerca deste poeta dissonante à crítica superficialmente apressada, escreveu o imortal da ABL Antônio Olinto:

Tornou-se Nauro Machado, com sua obra, o poeta brasileiro por excelência. Só de pensar que o Brasil tem um poeta da altitude e da força de Nauro Machado pode levar-me à certeza de que chegaremos bem mais longe na conquista de uma civilização, mesmo que outros setores oficiais do país não o façam. Sim, o Brasil verdadeiro é o de Nauro Machado, poeta como poucos, e não o que a nossa imprensa quer levar-nos a acreditar. Ela e o que suas páginas mostram hoje serão em breve coisas do passado. Nauro Machado é quem fala por nós e, através dele, sobreviveremos.

  Como se nota, a grandeza poética de Nauro Machado é evidente; autojustificável e notoriamente sustentável a despeito da indiferença daqueles que não a contemplam. Por contemplá-la como o maior milagre literário dos últimos anos, naquela que já fora há muito, merecidamente: Atenas Brasileira, e, sobretudo, por compreendê-lo como herdeiro e remanescente de uma tradição poética imediatamente universal, ainda que solapada por cataclismos de vanguardas efêmeras, é que se reclama à obra de Nauro Machado a concessão deste título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Maranhão.”. 



 *Professor de Filosofia/ Ciências Humanas da Ufma (Bacabal).


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