A GRANDEZA - Um Cirurgião da Alma Humana
A obra literária de Nauro Machado revela um altíssimo nível de engenho
verbal e com a capacidade única de provocar questionamentos profundos da
existência humana, em construções atemporais e de alcance universal
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RICARDO LEÃO/ POETA E ENSAÍSTA
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02/08/2015
O Maranhão, com toda a certeza, ocupa na história literária e artística
do Brasil posição e lugar privilegiados, sob todos os aspectos já fartamente
mencionados e documentados pela crítica e pelos historiadores da área. Essa, no
entanto, é uma já conhecida e velha cantilena que se repete desde os fins do
século XIX, quando este país alcançou sua autonomia expressiva no campo das
artes, muito em função (o que sempre foi claro para os maranhenses, e não tanto
óbvio para os que hoje são dominantes nos centros culturais ao sul e sudeste
brasileiros) da contribuição dos aqui nascidos. Torna-se, no entanto,
desnecessário repetir tal assertiva para situar a importância e mensurar a
estatura artística de outro gigante maranhense das letras, particularmente da
expressão lírica, já reconhecido e consagrado entre os maiores mestres de uma
arte cujos leitores e cultores em nosso país tornam-se cada vez mais marginais
e esquecidos. Falo, obviamente, do maior poeta vivo do Maranhão, Nauro Machado,
que alcançou, no domínio de sua arte, um altíssimo nível de engenho verbal, uma
fina ourivesaria poética, que, em todas as suas ricas e singulares
características, acresceu ao patrimônio estético da língua portuguesa uma
contribuição que o iguala aos mestres pinaculares do idioma, como Camões,
Bocage, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa,
Drummond, Cabral, Jorge de Lima, Cecília Meireles, entre outros nomes e obras.
A essa altura dos acontecimentos e da história brasileira, muitas
perguntas, no entanto, podem ser feitas, aproveitando o ensejo da passagem dos
80 anos de um dos maiores gênios poéticos gerados em terras nacionais. Uma
delas, no entanto, é preocupante, pois é o sintoma pungente de uma das nossas
mais tristes realidades: Qual o lugar da poesia em uma sociedade como a
brasileira, composta em sua maioria de orgulhosos não-leitores, na qual sete em
cada dez admitem não ler um único livro por ano? Como consequência, resta
também indagar qual a contribuição fundamental que a poesia, como arte máxima
da palavra escrita, num quadro desolador e desestimulante como esse, pode
efetivamente dar para mudar a atmosfera generalizada de ignorância, senso comum
e desprezo pelo patrimônio artístico produzido por artistas que insistem em
criar e produzir, a despeito da realidade. Para responder com cuidado e
profundidade tais perguntas, não há outro remédio senão aquele eternamente
recomendado por todos os educadores conscientes da tarefa civilizatória das
artes, da educação e da cultura: a leitura.
Ainda mais que isso. A literatura, e, em particular, a poesia, nas mãos
do leitor, é um agente de transformação e mesmo de revolução, sobretudo da
consciência. Nesse sentido, a principal contribuição da poesia de Nauro Machado
tem sido esse profundo e contínuo questionamento existencial que atravessa de
ponta a ponta a sua obra, e transforma-a numa das mais inquietantes, pertinazes
e ricas inquirições da
existência e da consciência humanas, em um nível e dicção apenas
comparáveis ao encontrável na obra de poetas como Fernando Pessoa, se tivermos
que estabelecer parâmetros de comparação, em nosso idioma, para dimensionar a
sua real magnitude. No entanto, a inquirição existencial da obra poética de
Nauro tem características únicas completamente distintas das do poeta lusitano,
sobretudo vazadas, em grande parte, na forma clássica do soneto e ritmos de
metro curto, que, em suas mãos, alcançaram níveis expressionais muito raros e
mesmo únicos em toda a história da língua portuguesa. De uma forma muito
peculiar e inovadora, a obra sonetística de Nauro ultrapassou os limites
conhecidos em nosso idioma, e não apenas em nível expressional, no qual atinge,
do ponto de vista técnico, um amplo domínio do rico léxico da língua, o que o
afasta da bitola dos coloquialistas da literatura de massa, ao lado da criação
de um acervo metafórico inigualável, repleto de oximoros extremamente
originais, altamente belos e sumariamente únicos, somados ao uso de metros,
rimas e ritmos que fazem de sua obra uma das mais notáveis cultoras da enorme musicalidade
da língua lusitana. Tudo isso o torna um dos poetas máximos da língua,
pertencente àquela diminuta e distinta família de criadores que elevam o idioma
ao nível mais alto de expressão e engenho artísticos, que poucos decerto
atingem.
Contudo, para muito além de tudo isso, soma-se à lírica de Nauro Machado
a inquestionável e elevada capacidade de fazê-la também um instrumento de
indagação filosófica, de cunho existencial, tornando-a não apenas um objeto
artístico habilidoso e único. Não, a obra de Nauro não é apenas um criativo
engenho verbal, uma mera construção de palavras da rara plasticidade semântica
e fonética, que apenas revelam um inventivo artesão linguístico, mas nada mais.
Nauro ultrapassa toda a escala dos que apenas versejam, sem ter muito ou nada a
dizer. A obra naurina situa-se entre aquelas obras de apelo universal,
atemporal, que indagam a brevidade da existência, a consciência, a angústia, a
morte, a vida, o sexo, a religião, a existência ou não da divindade, e, como
não poderia deixar de sê-lo, as equívocas e lamentáveis incoerências humanas.
Poesia com questionamento existencial
Desde o seu primeiro título, “Campo sem base” (1958), até os
recentíssimos “Percurso de sombras” (2013) e “O esôfago terminal” (2014), a
carreira poética de Nauro tem se distinguido da massa de poetas ou artistas do
verso brasileiros pelo caráter altamente instigante de sua investigação
existencial, característica essa que o situa ao lado de seu equivalente
lusitano, Fernando Pessoa, sem ter sido necessário criar uma coleção de eus e
heterônimos, e do qual se afasta, obviamente, pelo singular teor expressional
de sua confissão lírica. Nauro, ao contrário, apresenta-nos, em toda a sua
obra, o espetáculo de um Eu monolítico, de um Ego todo consciência, que
explora, em toda a riqueza semântica de suas metáforas e oxímoros, um universo
repleto de angústia, dúvida ontológica, desamparo e incerteza, e, nisso,
somente Augusto dos Anjos, em terras brasileiras, criou uma obra de timbre
semelhante. No entanto, a obra de Nauro atingiu, quer pela extensão de sua
própria
existência, aos 80 anos, quer pela sua dimensão, com mais de 40 títulos
publicados, momentos que nem mesmo Pessoa ou Augusto teriam alcançado, em
virtude da brevidade de suas existências e não tanto pelo tamanho de suas
obras. Nauro teve, no entanto, a oportunidade de construir talvez o maior
monumento lírico dedicado à existência da lírica de língua portuguesa, e, do
ponto de vista particular de sua obra sonetística, ao longo de mais de mil
sonetos contabilizados, sem contar os inéditos, a ser lançados em breve, nenhum
outro poeta do idioma conseguiu demonstrar tanta fecundidade, força e
consistência. E, apesar disso, a obra de Nauro ainda se espraia pela energia
ímpar de seus poemas breves, pelo timbre épico, mas profundamente lírico, de
seus poemas longos, pela totalidade de uma obra que desafia os atuais
parâmetros críticos da inteligência brasileira, e tornou-se, por isso mesmo, um
desafio aos intérpretes e leitores de toda formação.
Num país de não-leitores como o Brasil, em que o ensino de literatura
nos bancos escolares e universitários tem se tornado um permanente e
angustiante desafio não apenas para os
educadores em geral, mas, em consequência disso, um obstáculo
civilizatório que ameaça afundar as bases não muito sólidas da cultura letrada
em geral, a obra de Nauro é um fenômeno de persistência e genialidade acima de
qualquer suspeita, num momento em que todas as grandes vozes poéticas
brasileiras parecem ter silenciado ou são simplesmente ignoradas pela grande
mídia e pela indústria editorial. Enquanto muitas livrarias tradicionais fecham
nos grandes centros, a poesia de Nauro constitui uma revolução na
contracorrente da cultura. Talvez, hoje, não exista nada mais contracultural,
revolucionário e marginal do que insistir em produzir poesia de altíssimo nível
expressional em nosso país, fundindo, numa única expressão, vanguarda e
tradição. Do ponto de vista dos comportamentos questionadores, a obra de Nauro
ergue-se como um antídoto diante da banalização do vulgar, do irrelevante e do
massivo corrente em nossa cultura, resultado de um país de enormes contradições
sociais, culturais e, do ponto de vista da justiça e da igualdade, ainda
enormemente injusto e desigual.
Há, no entanto, os que afirmam que o erudito é um empecilho
desnecessário à democratização do saber e da cultura. Em decorrência disso, prospera
uma visão equivocada, sobretudo na indústria editorial, de que as obras
literárias e mesmo científicas devem possuir certo apelo massivo para que assim
gerem divisas e encontrem leitores. A obra de Nauro propõe uma senda contrária,
que é a de gerar leitores a partir de suas demandas, necessidades e
particularidades expressionais, e não o contrário. A arte revolucionária, de
uma maneira geral, tem se comportado assim, como uma provocação e mesmo um
remédio contra a lógica da vulgarização e do consumo, que, de forma insistente,
deseja reificar a arte em objeto de consumo como qualquer outro. Nauro
permaneceu, ao longo de toda a sua obra, como um artista que não faz concessões
a essa lógica de consumo da palavra, que a esvazia de conteúdo lírico e existencial,
tornando-a apenas mais um artefato de fruição rápida e descartável, em que o
midiático, sem menoscabar do coloquial e da simplicidade, torna-se o centro
fixo do logos artístico.
Em suma, a leitura da obra de Nauro representa um convite para aqueles que
desejam encontrar algo ímpar, que, a despeito de sua erudição e força
semântica, representa para os seus leitores o mergulho em um universo repleto
de paisagens líricas inesgotáveis, de sentidos sempre renovados à luz das
experiências existenciais que, em termos arquetípicos, somos todos obrigados a
viver de uma forma ou de outra. Ou seja, Nauro pertence àquele grupo de
criadores poéticos, tal como Gullar, Chagas, Tribuzi, entre os maranhenses, que
acrescem ao leitor a rica experiência de uma singular consciência humana, capaz
de expressar, por meio de instrumentos únicos e belíssimos, uma jornada
existencial e espiritual que se ergue como farol e monumento para os que
desejam encontrar, por meio da palavra artística, um jorro de luz sobre a
precariedade da vida.
A obra de Nauro, quando o homem completa 80 anos e a obra um pouco
menos, persiste como um testemunho da coerência e da profissão de fé emitida há
57 anos: “Meu corpo está completo, o homem – não o poeta. [...] ser poeta é
duro e dura/ e consome toda/ uma existência”.
Com uma extensa bibliografia já concluída, mas ainda em construção, o
poeta e o homem permanecem na convicção de que a arte só é possível em uma
entrega completa e sem qualquer concessão, em um verdadeiro projeto de ser, em
uma negação permanente do não-ser. Assim, Nauro demonstrou a assertiva de que a
construção de uma obra coerente, plural e ambiciosa somente é possível na
solidão e angústia da criação, sem qualquer vedetismo ou estrelismo. O que os
grandes escritores e poetas têm a dizer para as massas não pode ser dito,
porquanto foi escolhido um veículo em que o intraduzível pode ser verbalizado,
por outro meio senão o da arte. Logicamente, os grandes criadores, mesmo sendo
muito populares, têm de recolher-se para atender ao chamado do Ser, que os
convoca para registrar aquilo que, em meio à multidão, não pode, em geral, ser
ouvido ou mesmo registrado em forma de palavra.
Deste modo, tem surgido um
grupo seleto de artistas da palavra que têm recusado o preço que o
reconhecimento, a consagração ou a fama cobram de suas obras. No mundo da
prosa, há o exemplo de escritores reclusos e silenciosos como Dalton Trevisan,
Rubem Fonseca. Ao longo de sua obra, Nauro tem se confirmado, no âmbito da
lírica, como o artista que nega o midiático, sem depreciar o contato humano, em
favor da criação artística. O artista, mesmo em contato com as massas (e Nauro
é um desses artistas que, encravado no erudito, constitui um mito pessoal
extremamente popular e reconhecido), é ainda um solitário.
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