Jornalismo, um mal necessário

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Jornalismo, um mal necessário


Em seu conjunto, imprensa corresponde à respiração mental da sociedade 
manual
Por Otávio Frias Filho (*)
O jornalismo pode ser qualificado, embora com certo exagero, como um mal necessário.
É um mal porque todo relato jornalístico tende ao provisório, quando não ao precário. Nem todos os jornalistas estamos preparados para abordar os assuntos sobre os quais escrevemos. Mesmo quando estamos, é próprio do jornalismo apreender os fatos às pressas em seus contornos ainda indefinidos. A chance de erro, sobretudo de imprecisões, é grande.

O próprio instrumento utilizado é suspeito. Diferente da notação matemática, que é neutra e exata, a linguagem escrita se presta a vieses de todo tipo, na maior parte inconscientes, que refletem vivências, visões de mundo, cacoetes mentais de quem escreve. Eles interagem com os vieses de quem lê, de forma que, se são incomuns os textos de fato isentos, mais raro ainda que sejam reconhecidos como tais.
A propósito do lançamento da quinta versão do "Manual da Redação" da Folha, peço licença para um testemunho pessoal. Pertenço a uma geração que não se conformava com as debilidades do relato jornalístico. Claro que nunca tivemos a ilusão de que fosse possível alcançar uma objetividade comparável à da matemática. Mas acreditávamos em dois caminhos para reduzir a margem de arbítrio.
O primeiro era estipular uma série de normas destinadas a coibir a incidência de erros e lacunas e amainar o efeito dos vieses. O segundo era dotar o veículo de instrumentos coercitivos de autocorreção, como a manutenção de um(a) ombudsman e a obrigatoriedade de publicar a seção "Erramos".
Foram estratégias frutíferas, mas que logo mostraram seus limites. É mais fácil retificar erros específicos do que tornar as abordagens menos superficiais. E o excesso de regras acabou por se converter em obstáculo —não existe norma que garanta uma boa formação profissional e intelectual. As edições mais recentes do "Manual" são menos draconianas, baseadas antes em orientações do que em comandos categóricos.
O objetivo daquela geração, realizado apenas em parte, era estabelecer que o jornalismo, apesar de suas severas limitações, é uma forma legítima de conhecimento sobre o nível mais imediato da realidade. Para afirmar sua autonomia, precisa cultivar valores, métodos e regras próprios.
O que nos remete à questão do início; sendo um mal, por que necessário? Por dois motivos. Ao disseminar notícias e opiniões, a prática jornalística municia seus leitores de ferramentas para um exercício mais consciente da cidadania. Thomas Jefferson pretendia que o bom jornalismo fosse a escola na qual os eleitores haveriam de aprender, pela cobertura crítica dos governantes, a exercer a democracia.
O outro motivo é que os veículos, desde que comprometidos com critérios de verificação e com o debate dos problemas públicos, servem como arena de ideias e soluções. O livre funcionamento das várias formas de imprensa, mesmo as sectárias e as de má qualidade, corresponde em seu conjunto à respiração mental da sociedade.
No entanto, o jornalismo dito de qualidade sempre foi objeto de uma minoria. A grande maioria das pessoas está de tal maneira consumida por seus dramas e divertimentos pessoais ou domésticos que sobra pouca atenção para o que é público. Desde quando os tabloides eram o principal veículo de massas, passando pela televisão e pela internet, vastas porções de jornalismo recreativo vêm sendo servidas à maioria.
O jornalismo de verdade, que apura, investiga e debate, é sempre elitista. Está voltado não a uma elite econômica (embora exista uma intersecção com ela), mas a uma aristocracia do espírito —aqueles interessados no que está além dos interesses privados. São líderes comunitários, professores, empresários, políticos, sindicalistas, cientistas, artistas. São pessoas voltadas ao coletivo.
A influência desse tipo de jornalismo sempre foi, assim, mediada, e não somente pelas elites sociais que o assimilavam. Desde que se tornou hegemônico, nos anos 1960-70, o jornalismo televisivo se faz pautar pela imprensa. Algo parecido ocorre agora com as redes sociais, que se tornaram câmara de amplificação e controvérsia (espécie de metaimprensa) em torno do que é publicado na mídia profissional.
A imprensa, que vive de cobrir crises, sempre esteve em crise. O paradoxo deste período é que, no mesmo passo em que as bases materiais do jornalismo profissional deslizam, sua capacidade de atingir mais leitores se multiplica na internet, conforme se torna visível a perspectiva de um dia universalizar o ensino superior.
(*) Otavio Frias Filho
Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, é autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Peças e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013).

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