Morre o poeta e escritor Nauro Machado.
LUTO NA CULTURA MARANHENSE
O velório será neste sábado na Academia Maranhense de Letras.
Ele tinha 80 anos .Ele tava internado desde terça-feira no apartamento do hospital. Aí ontem piorou e desceu pra uti. Ele tinha uma diarreia crônica e isso foi debilitando. De madrugada entrou pra cirurgia e tiraram uma parte grande do intestino dele, mas ele não resistiu.
Ele um tempo atrás teve câncer de esôfago, mas estava tratado .
Nauro Machado: 45 Anos de Poesia
Data de Publicação: 30 de novembro de 2005
Síntese Biográfica
Nauro Machado, que nasceu em São Luís, a 2 de agosto de 1935, é o nome literário de Nauro Diniz Machado. Filho de Torquato Rodrigues Machado (falecido) e de Maria de Lourdes Diniz Machado, tem dois irmãos: Mauro e Dauro. Casado com a escritora Arlete Nogueira da Cruz, tem um filho, Frederico da Cruz Machado. Estudou no Colégio de São Luís os cursos primátio, ginasial e científico, tendo passagem de um semestre pelo Colégio Mallet Soares, no Rio de Janeiro. Trabalhou no Serviço de Assistência a Menores (SAM). Na Fundação do Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP), entre 1962 e 1971, exerceu o cargo de escriturário, com a função de redator, copydesk de todas as correspondências da seção de pessoal. Ainda trabalhou na Secretaria de Agricultura do Maranhão, na EMATER, na SURCAP, no DETRAN, na Secretaria de Indústria e Comércio do Maranhão, instituição que o pôs à disposição do Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado, SIOGE, órgão que foi extinto em 1995, por decreto governamental. De 1980 aos dias atuais, trabalha na Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão, hoje Fundação Cultural do Maranhão, como Assessor Cultural.
Dono de uma cultura literária vastíssima, o poeta Nauro Machado é um desses raros autodidatas que têm como referência mais antiga, no século XIX, o carioca, romancista, contista e poeta, Machado de Assis, que também foi autodidata. Por essa comparação, poder-se-á concluir o nível de leitura de quem conhece profundamente as literaturas grega e latina, a francesa, a alemã, a inglesa, a italiana, a espanhola e a de escritores da América Latina, sem mencionar a cubana, a mexicana e, principalmente, as de Língua Portuguesa, em especial, a maranhense.
Vasto conhecimento de filosofia e arte em geral, em especial em literatura e cinema, o poeta domina a língua francesa desde a tenra idade. Escritor profissional, sem dúvida um clássico de Língua Portuguesa, no melhor e mais amplo sentido do particular para o universal, Nauro Machado vem, ao longo de 45 anos, construindo uma obra poética monumental no panorama da Literatura Brasileira e Portuguesa, representada já por trinta e quatro títulos.
O poeta é detentor de vários prêmios, destacando-se o de Poesia da Cidade de São Luís, várias vezes conquistado por ele; o da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1982; o da Academia Brasileira de Letras, em 1999, e o da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, em 2000.
Citado em enciclopédias e em dicionários nacionais e internacionais, tem alguns de seus poemas traduzidos para vários idiomas, em alemão, inglês, francês e catalão, conseqüentemente publicados em antologias e revistas internacionais. O poeta está incluído em inúmeras antologias do Maranhão e do Brasil. Recentemente inauguraram, no Projeto Reviver Praia Grande, em São Luís, a Praça Nauro Machado. Também inauguraram uma efígie, em homenagem ao poeta que, aos 68 anos de árdua existência, começa a se tornar popular, em São Luís. Inclusive, em 2002, sua vida e sua obra foram temas e samba-enredo da Escola de Samba Turma do Quinto, que ganhou o primeiro lugar, no Carnaval de São Luís do Maranhão.
Opiniões da crítica especializada sobre a obra naureana
Sonetos [que] nada têm que ver com os velhos sonetos de um tempo em que os poetas sacrificavam o corpo e a alma nas chamas de um holocausto chamado “chave de ouro”. [...] Em nenhum momento o seu discurso poético faz concessões à retórica de amenidades. É uma tessitura de conflitos, uma construção verbal de rigoroso desenho estético. (Francisco Carvalho)
Um dos grandes poetas brasileiros de nosso tempo. (Adonias Filho)
E se analisarmos [...] a sua marca pessoal – tanto no engenho como na arte – e a compararmos com as marcas dos monstros sagrados do lirismo nacional contemporâneo, chegaremos sem esforço à conclusão de que, no Brasil do século XX, raros são os poetas de tal força, originalidade e domínio artesanal. (Fernando Mendes Viana)
Não hesito em colocar Nauro Machado entre os grandes poetas do Brasil de hoje, independente de geração ou idade. (Antônio Olinto)
Poeta único na poesia brasileira [...] Nauro conseguiu sintetizar numa linguagem tão rarefeita, quase irrespirável, entre o céu e o inferno, o caótico destino humano.
(Cláudio Murilo Leal)
Nauro caminha na contramão de um leitor acostumado com as veleidades do fácil.
(José Aparecido da Silva)
Alta e impressionante poesia.
(Carlos Drummond de Andrade)
Poucos poetas – talvez um Baudelaire, um Antero de Quental, um Augusto dos Anjos – têm, como esse solitário maranhense, enfrentado a tarefa árdua e encantatória de expressar, mas o fazendo sob o regime de uma consciência criadora face às possibilidades do verbo – verbo que é fala, pensamento, imagem e melodia – os ângulos escusos, os obscuros abismos, as cartilagens doloridas e inescrutáveis da estrutura humana.
(Hildeberto Barbosa Filho)
Apanha o homem na queda a estágios profundos de impotência e incerteza.
(Donald Schüller)
Uma carreira poética ímpar no contexto literário brasileiro de hoje.
(Alfredo Bosi)
Nauro Machado é único. Complementando Adonias Filho, eu diria: “um dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos.”
(Luciana Stegagno Picchio)
Obras literárias de Nauro Machado
Campo sem Base. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1958.(Prêmio Sousândrade da Prefeitura Municipal de São Luís – 1958 .); O Exercício do Caos. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1961; Do Frustrado Órfico.São Luís: Edição particular, 1963; Segunda Comunhão. Rio de Janeiro. Editora São José, 1964. (Prêmio Sousândrade da Prefeitura Municipal de São Luís – 1964 ); Ouro Noturno. São Luís: Edição particular, 1965; Zoologia da Alma. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966; Necessidade do Divino. São Luís: Departamento de Cultura, 1967; Noite Ambulatória. Rio de Janeiro: Edição Porta de Livraria, 1969; Do Eterno Indeferido. Rio de Janeiro: Edição Porta de Livraria, 1971; Décimo Divisor Comum. Rio de Janeiro: Edição Porta de Livraria, 1972. (Prêmio Sousândrade da Prefeitura Municipal de São Luís, 1972); Testamento Provincial. Rio de Janeiro: Edição particular, 1973; A Vigésima Jaula. Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Maranhão, 1974; Os Parreirais de Deus. Rio de Janeiro/ São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 1975; Cinqüenta Poemas escolhidos pelo Autor. Coleção Azulejo. São Luís, 1976; Os Órgãos Apocalípticos. Rio de Janeiro: Edição particular, 1976; A Antibiótica Nomenclatura do Inferno. São Luís: SIOGE, 1977; As Órbitas da Água. Brasília: Gráfica do Distrito Federal, 1978; Masmorra Didática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: MEC, 1979; Antologia Poética. São Paulo: Editora Quírion/ MEC, 1982; O Calcanhar do Humano. São Luís: SIOGE, 1981; O Cavalo de Tróia. Rio de Janeiro: Antares/MEC, 1982. (Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, 1982); Lamparina da Aurora. Brasília: Gráfica do Distrito Federal, 1982; O Signo das Tetas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/ MEC, 1984; Apicerum da Clausura. Rio de Janeiro: Cátedra/MEC, 1985; Opus da Agonia. Rio de Janeiro/ Rio Artes, 1986; O Anafilático Desespero da Esperança. Rio de Janeiro/ Cátedra, 1987; A Rosa Blindada. Rio de Janeiro: Alhambra, 1989; Mar Abstêmio. Brasília: Gráfica do Distrito Federal, 1991; Funil do Ser. São Luís: EDUFMA, 1995; A Travessia do Ródano. São Luís: EDUFMA, 1997. (Prêmio Sousândrade da Prefeitura Municipal de São Luís, 1997); Antologia Poética. Rio de Janeiro: Imago/Universidade de Mogi das Cruzes/ Biblioteca Nacional, 1998, Prêmio Fernando Pessoa – (Prêmio Conjunto de Obras 1999, da União Brasileira de Escritores, UBE); Túnica de Ecos, São Luís: Lithograf, 1998; Jardim da Infância. São Luís, Lithograf, 2000. (Antologia organizada por Arlete Nogueira da Cruz); Nau de Urânio (Antologia de sonetos publicados e alguns inéditos): Coleção Maranhão Sempre. São Paulo, Editora Siciliano, 2002 e A Rocha e a Rosca. São Luís, Lithografs, 2003. Nauro Machado tem quatro livros inéditos de poesia e um de prosa, reunindo pequenos ensaios publicados em jornais e revistas, na maioria tratando de escritores maranhenses.
Visão Crítica
Chegado a trinta e quatro livros publicados, o último, A Rocha e a Rosca, Nauro Machado fecha um círculo e um ciclo de uma longa fase de quase cinqüenta anos de poesia. E este livro, visto no todo, é uma releitura dos títulos precedentes, daí por que, numa primeira abordagem, tem-se a sensação de que o poeta está-se repetindo monocordiamente. Muito pelo contrário, ele apenas se relê, fazendo com que o texto do livro atual dialogue metalingüisticamente com os textos dos livros precedentes, recaptulando os vários ‘eus-líricos’ expressados ao longo de sua vasta e compacta obra, agora re(visitada) como que cinematograficamente, através do desdobramento das várias máscaras do autor-poeta, como síntese do desvelamento do inconsciente (do eu-) coletivo, naquela perspectiva de que nos fala Jung, que vê a criação literária como o afloramento da introspecção psicológica.
Sem se esgotar em A Rocha e a Rosca, pois que a posteriori se desdobrará com a publicação dos vários inéditos, a obra literária naureana, em sua compactividade, se apresenta como um grande romance em versos, em cujo texto perpassa o frêmito do delírio e do monólogo interior, em várias releituras de obsessivos temas, cada vez mais recorrentes no trânsito do fluxo da memória.Texto autobiográfico, cuja maior marca de autenticidade é a banalização da realeza diante da morte, nivelando os seres de todas as classes sociais tão logo se dá o passamento da vida em féretro. Neste campo, o protagonista é o ser humano, em seu drama existencial, marcado pela ambigüidade ou paradoxo do saber-se vivo, mas precário e provisório, criatura impotente diante do Criador, ainda que se saiba criado à imagem e semelhança como obra-prima da Criação. Cabe, entretanto, ao poeta, diante da fatuidade existencial física, enquanto criatura, plasmar a sua obra de sopro de imortalidade e eternidade, tornando-se, de fato, também, criatura-criadora. Isto Nauro Machado consegue, como um demiurgo, que em seu virtuosismo estético e metafísico soma em si o ser, em essência, onisciente e onipresente no orbe da obra que gerou, gestou, deu à luz e criou.
A leitura da obra literária de Nauro Machado permite vários olhares. De um lado, a opção por uma poesia nuclearmente metafísica, o que o põe no encadeamento e emparelhamento com algumas das melhores vozes da poesia universal. As sondagens das angústias, inquietações e dilacerações do eu mais profundo do ser humano dão a sua obra um caráter de permanente atualidade e autenticidade, no plano a que se propõe significar a si mesmo e ao mundo, considerando-se o universo da leitura e experiência que tem e de onde ele extrai a visão e a cosmovisão ou mundividência, expondo-a numa realidade paralela ou ficcional, já que trabalha ao nível da verossimilhança. As viagens vertiginosas, pelas galerias e voragens dos labirintos e meandros mais subterrâneos e recônditos do ser, onde o ser se camufla e se fecha, às vezes, como caracol, para proteger-se, dá, ao final, ao poeta, a certeza de que ser é não-ser-sendo. Daí a permanente obsessão humana pela descoberta da fórmula alquímica que livre o homem do pesadelo da morte. Nauro Machado é esse poeta que se vê e se lê, ao morrer, vivendo cotidianamente sem poder fazer absolutamente nada, senão clamar aos céus como o iluminado e rebelado Rainer Maria Rilke (1875/1926), o metafísico de Praga de Elegias de Duíno, escritas em janeiro/fevereiro de 1922, sobre as quais o próprio Rilke declarou, “...eu não sabia que poderia acontecer um tal furação de espírito e coração!” O texto de Rilke, aqui incluído, é uma homenagem-síntese à irmandade espiritual-metafísica, embora não estética neste particular. Porque a peculiaridade estética que os irmana está nos sonetos, sem débitos bilaterais. Ouçamos o Rilke da Primeira Elegia:
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,
de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua
existência mais forte. Pois o Belo nada mais é
do que o começo do Terrível que ainda suportamos;
e o admiramos porque, sereno, desdenha
destruir-nos. Todo anjo é terrível. (1)
Ouçamos agora Nauro Machado, em alguns sonetos metafísicos, cuja base é a introspecção psicológica, aflorada sob a forma de monólogo interior, a projetar-se em discurso poético, por força do engarrafamento no trânsito do fluxo da memória. Sendo de vários livros, os sonetos aqui selecionados foram coletados da antologia Nau de Urânio:
Benditos sejam pois os que se sabem nada
Mas dentro desta fossa sendo alguma cousa:
o sonho de ser tudo, como um mundo, a cada
sonho que, sendo nada, tudo violenta e ousa.
Benditos sejam, pois, só com a madrugada
por alento e, por noite, o ser de ebúrnea lousa.
Se nome e ossos são pó, restos de toda amada
vida que, sendo tudo, no nada repousa,
benditos os que rompem limites, janelas,
restaurantes, metrópoles, pias e mazelas
postados no quartel da terra, e em mim também.
Bendito amanhecer, onde a escuridão rui,
meu amanhecer sem nada, quando tudo flui,
trazendo para a vida, agora, o que era além.
(In Do Eterno Indeferido, 1971)
Soneto 298, p. 211
Sois o que sois para ainda mais serdes,
para enfim nunca mais vos acabardes,
cânceres rubros sobre anginas verdes,
próstatas, vulvas que viveis cobardes.
E cego ainda na matéria vedes
a escuridão de elétricos alardes:
bolos de angústias estendendo redes,
bolos de angústias sepultando tardes.
És o que não és para ainda mais seres,
sendo o que não serás do que ainda és
para o que foste de ânsias e prazeres.
E és o que não és com a boca dos plurais.
Ó minhas mãos, cabeça, tronco e pés:
sois o que sois para ainda serdes mais.
(In Apicerum da Clausura, 1985)
Ah, perquirir recessos insondáveis da alma humana, ser o buscador de relâmpagos e tempestades e descobrir que não há paz perene, senão talvez na morte. Mergulhar obstinadamente ao longo de mais de 50 anos nessa pesquisa sobre o âmago do ser em sua lactescência e encontrar, naquilo que Jung chamou de inconsciente coletivo, uma maneira de atenuar a desimportância da criatura perante a obra da Criação e o Criador. Assim, o poeta tem que, também, ao buscar, fazer-se ou tornar-se o ser buscado, pois é sendo simultaneamente cirurgião e cobaia de si mesmo, autopsiando-se, que poderá ser demiurgo, um outro criador ao plasmar o texto em que está encapsulado de perenidade. A conclusão, ainda, é de Rilke,
dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens;
e os animais astutos já notaram
que nós não somos confiáveis
neste mundo definido. Resta-nos, talvez,
uma árvore qualquer na encosta, que revemos
todos os dias; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade mimada de algum hábito
que gostou de nós e conosco ficou e não se foi. (2)
Precisamos descobrir e lembrar obsessivamente que o ser humano não é confiável, vigiando e orando, porque ele é vocacionado para ser perverso e pérfido em sua própria natureza avassaladoramente sádica. Para viver entre os humanos, é preciso conhecer bem das ciladas dos lodaçais e das fontes. Só está verdadeiramente preparado para viver neste mundo aquele que se conscientizar de que quem bebe da água turva, bebe uma água muito melhor. É preciso beber e saciar-se na água dos pântanos, para poder dar valor à água dos cântaros, senão na e da lama não nasceriam paradoxalmente as mais exuberantes papoulas.
Também há um outro poeta que melhor que qualquer mortal explica a poesia do poeta Nauro Machado, porque também mergulhou fundo nas galerias e labirintos mais subterrâneos da natureza humana em sua servidão. Retornemos no tempo já que “O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/ E o tempo futuro contido no tempo passado”, conforme intuiu T. S. Eliot, que nasceu em St. Louis, Missouri, Estados Unidos, a 26 de setembro de 1888, e faleceu em Londres, com 76 anos de idade, a 4 de janeiro de 1965, e entender o que ele nos diz através do texto dos Quatro Quartetos, obra publicada em 1943:
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina ou um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos, tecidas com a silente legenda. (3)
Em sua essência metafísica, a poesia de Nauro Machado transita pelos mesmos caminhos, porém com outras nuances estéticas, mais comprometidas com paradigmas arquetipicamente recriadores daquela tradição que, segundo o próprio Eliot, não deve ser herdada, senão conquistada, após demorado sacrifício.Vejamos correspondentes desse ponto de vista filosófico, em sonetos de Nau de Urano:
Sondo o mistério, a febre da existência,
matéria hóspede em precária estada,
me acompanhando o fardo da indigência,
em desastradas formas desatada.
Cabelos crescem: eis a evidência
das coisas vivas, desta angustiada
procura do real, por sobre a ausência
de mim, do meu ser quase sonho ou nada.
Traíram-me os céus. Trutas trotam rios.
Uma criança nasce dos estios
desaguados nos meus invernos vários.
Sofro o futuro na idéia de ser hoje,
e entanto passo, eis que o futuro foge-
me agora, feito de ontens sanguinários.
Soneto 71, p. 72
Morri depois de perder meu futuro!
Passado aceso, em chama iluminado,
encontrei o inferno e o céu, lado a lado,
coabitando em mim no mesmo escuro.
Cavei, bem fundo, o pai e a mãe num monturo,
e mesmo assim não me dei por achado:
após perder meu futuro passado,
chorando séculos do que amarguro,
inútil resto, por ser-me insepulto,
carregando montanhas do meu vulto
insano e trôpego, em humano horto.
Por que, então, brado aos céus deste infortúnio,
estou passado no presente que une
o meu futuro ao em mim perdido e morto?
(In Décimo Divisor Comum, 1971)
Do ponto de vista estético, estamos diante de um poeta que atingiu o virtuosismo, na acepção plena da palavra, cujos poemas, vistos no conjunto, formam um único ícone verbal e são, modelar e subliminarmente, verdadeiros estudos sobre a arte de construir poemas. Principalmente nos sonetos é que ele alcança esse patamar de ascese, através da consolidação de uma obra invejável, tanto do ponto de vista da qualidade, quanto da quantidade. Nauro Machado, sem dúvida, no Brasil e também no plano internacional, é o poeta que, melhor que ninguém, na atualidade, soube criar a síntese de todas as experiências estéticas na arte dos quatorze versos.
Com uma consciência clássica e moderna do assunto, o poeta Nauro Machado recria as melhores conquistas do gênero, passando por Camões, Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Maranhão Sobrinho, Baudelaire, Mallarmé e Rilke, dentre outros estetas do soneto, que poderão ser, também, revisitados no ABC da Literatura, de Ezra Pound.
Consagrando-se, assim,como um dos mestres do rompimento da linha melódica ou entonação do verso tradicional, para uma escala atonal, Nauro Machado faz do enjambement ou cavalgamento um recurso que dá andamento e mobilidade rítmicos ininterruptos entre os versos de seus sonetos, independentemente da metrificação e até tornando-a quase que desnecessária, que nele passa a funcionar, ainda que perfeita, como pano de fundo. A esta poderosíssima arma se soma a arte criadora na construção das rimas as mais inusitadas possíveis, quer por assonâncias, quer por dissonâncias, até atingir a polifonia rímica. Enfim, estamos, de fato, diante de um mestre, de um poeta no ápice do virtuosismo estético, cuja linguagem é transposta para o campo metalingüístico, porque a obra literária de Nauro Machado não tem sido senão um pretexto, do ponto de vista estético, para que ele possa fazer com que a obra criada se engendre à imagem e semelhança do conhecimento que o seu criador tem sobre a construção do poema, nos mais variados níveis da criação literária. Exemplo lapidar é este soneto do poeta, síntese do questionamento ontológico:
O nada é ser memória de ninguém.
Treva qualquer, qualquer tábua nenhuma,
madeira morta pr’a um morto também,
serei memória pois de coisa alguma.
Estarei em mim comigo no que é sem
aquilo que à pessoa faz-lhe ser só uma:
um Deus morto antes mesmo de Belém,
um barco feito porto todo em bruma.
E em mim desfeito além nalgum lugar,
fugidia sombra em mim a acontecer
quase sessenta anos indo a negar
a forma máxima ou mínima ao ser
nesta neutralidade vou chegar
qualquer dia, quem sabe?, a me saber.
(In A Travessia do Ródano, 1997)
(1 e 2) Rilke, Rainer Maria. Os Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno. Tradução de Karlos Rischbieter com Paulo Garfunkel. Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 2002. p.127-129.
(3) Eliot, T. S. Poesia. Tradução de Ivan Junqueira. 6.ed.. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981. p.199-207.
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