A DOENÇA DO BRASIL
Roberto Damatta
29 Abril 2015 | – Estado de São Paulo
O Brasil é doente, diagnosticou o insuspeito ex-presidente do Uruguai,
José Mujica, numa entrevista à BBC que o Globo repercutiu na sua edição do dia
24 do corrente. Para Mujica, com 80 anos e muitos quilômetros rodados na vereda
política e tendo como norte a irmandade esquerdista latino-americana, a
patologia nacional brasileira tem como centro o "tráfico de
influência", que seria uma "tradição" do nosso sistema político.
Concordo em gênero, número e grau com Mujica.
Ele não leu o que tenho reiterado em livros e neste espaço, mas é
exatamente isso que afirmo quando entendo que toda a cosmologia do Brasil se
fundamenta nas relações pessoais e como essas relações são administradas.
A lógica do dar e receber (ou do dar para receber) é o coração do
"favor". Se eu te faço um favor, se eu te devo favores, esses favores
nem sempre se encaixam nas divisões ideológicas e jurídicas que regem o Brasil
como país.
José Mujica discerne o problema quando acentua que conseguir a maioria
parlamentar no Brasil, em nível local ou nacional, é muito difícil porque
"o Brasil é um macramé". Ora, o macramé, como esclarece o dicionário,
é uma colcha de retalhos. Em sociologuês, dir-se-ia - como elaborei num livro
publicado em 1979 (Carnavais, Malandros e Heróis) - que é um conjunto de elos
imbricados, constituídos a partir de simpatias e antipatias pessoas, num palco
demarcado por papéis institucionais. Se o macramé fala de liames pessoais, o
lado legal do sistema demanda que ele se dobre ou venha a romper-se pelos
deveres impostos pelos papéis institucionais. Um presidente de estatal não pode
nomear somente companheiros de partido. Ele é obrigado, pelo papel que ocupa, a
escolher pelo mérito. Entre esses dois impulsos ou obrigações, situa-se o que
chamei de "dilema brasileiro". Um dilema vigente em todas as
democracias inspiradas nos ideais universalistas de 1789.
Num nível tudo parece muito simples: gastamos muito, erramos muito mas,
acima de tudo, continuamos a imaginar a centralização como a saída para todos
os problemas nacionais, esquecendo a força dos velhos costumes, os quais têm o
poder das velhas tecelagens, como revela Mujica.
Tanto no plano econômico, quanto no político, as regras são claras e
formais. Mas o mundo das "influências" advindas da casa, uma ética da
reciprocidade interfere com a do estado e distorce o chamado "espírito do
capitalismo". Nessa tecelagem, a empresa não visa ao lucro, mas ao emprego
para os amigos e recursos para o partido.
O Brasil se diferencia da Europa Ocidental, dos Estados Unidos e da
América Latina porque ele não teve republicanismo e, até 1889, foi uma
monarquia fundada no trabalho escravo. Na transição entre esses regimes, os
conflitos foram reprimidos precisamente pela ética dos elos pessoais entre
monarquistas, escravistas, republicanos e protocapitalistas, que jamais
abandonaram seus hábitos aristocráticos. Todos nós temos todas as coragens,
menos a de negar o pedido de um amigo, conforme dizia Oliveira Vianna num
ensaio de 1923.
Neste mundo marcado pela transparência eletrônica, esse hóspede não
convidado pelo nosso mulatismo cultural e avesso ao confronto, as contradições
surgem claramente no laço entre riqueza e poder. Entre as demandas de quem
gerencia a economia (cujas regras são digitais: não posso gastar mais do que
tenho!); e as da política, as quais incluem não apenas os jeitinhos ou
"pedaladas", mas, sobretudo, as relações pessoais mescladas ou não de
ideologia, as quais são infinitas.
Mujica aponta que confundimos governar com mandar. E adverte: não se
pode misturar a vontade de ter dinheiro com política. Se fizermos isso,
complementa, estamos fritos. "Quem gosta muito de dinheiro tem que ser
tirado da política." A corrupção brasileira tem um sinal: ela se funda na
apropriação de cargos por pessoas que, mesmo quando são eleitas debaixo de uma
bandeira populista ou socialista, acabam bilionárias. É impossível resistir aos
amigos, mas é muito mais difícil liquidar essas sobras aristocráticas que são,
a meu ver, a marca mais forte e permanente do nosso republicanismo: cargos que
impedem punição, crimes que prescrevem, responsabilidades que não são cobradas.
Num certo sentido, não temos noção da tal "coisa pública" - esse
conceito imprescindível para uma vida igualitária e democrática - republicana.
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