Milagres do carnaval: a Banda da Bicicletinha consegue o improvável, movimentando o centro velho da cidade no sábado à noite.

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Milagres do carnaval: a Banda da Bicicletinha consegue o improvável, movimentando o centro velho da cidade no sábado à noite.

Eugenio Araújo
Professor do dep. De artes-UFMA




Neste sábado, dia 10, percorria de carro o centro da cidade, atrás de uma agência bancária aberta, onde pudesse fazer um saque, coisa rara ultimamente, depois de tantas bombas e assaltos. Senti algo diferente não só no ar, mas nas pedras e asfalto das ruas: um movimento incomum, uma azáfama, um falatório, até uma alegria. A princípio estranhei.

 O centro histórico à noite é um verdadeiro deserto, território perigoso para transeuntes, especialmente os pedestres. Depois que o comércio fecha, a região central entra numa espécie de letargia, dominada por sombras, ruídos e odores assustadores. Tudo ali afasta, não só o morador, como também o visitante. 

Mas neste sábado havia algo diferente. Depois de rodar algum tempo e continuar vendo grupos de moças e rapazes fogosos, sorrindo e até dançando, em caminhadas desguiadas por várias ruas que costumo ver ermas, lembrei o motivo de tanta agitação: era a Banda da Bicicletinha, que deflagrou o carnaval no Centro Histórico.


Enquanto perseguia um caixa eletrônico, viajei no tempo e relembrei a história das bandas no centro de São Luís. Comecei a frequentá-las em finais da década de 1970, quando surgiu Banda do Baixo Leblon, que concentrava no bar homônimo, localizado na cabeceira da ponte do São Francisco. Era uma banda de “vanguarda”, com marcada participação GLS, que reiniciou uma tradição antiga de tomar de assalto o centro da cidade no período pré-carnavalesco.

 A banda saía em cortejo de tardinha, subindo pela rua do Egito ou passando pela fonte do Ribeirão, espalhava-se pela João Lisboa, espremia-se na Rua Grande, alegrava a praça Deodoro, descia pela rua do Sol e voltava ao ponto de origem já à noite. Era uma festa completa, com o povo dançando e cantando pelas ruas, antes tomadas por carros, compromissos inadiáveis e preocupação.

Logo depois dela, vieram as bandas do Grafitte e da Saudade. A primeira era de caráter mais classe média, mas não renegava a filiação, concentrando numa região bem próxima à matriz, na porta do antigo Cine Roxy (mesmo local onde hoje brinca a Banda da Bicilcetinha); a segunda começou como diversão do bairro da Madre Deus, mas se cresceu tanto que atraía gente de toda cidade para brincar na porta do cemitério do Gavião. 


Ambas saíam em cortejos relativamente longos, onde a praça Deodoro era um ponto comum, voltando depois aos locais de concentração. Um pouco depois surgiu a Banda do Desterro, de vida mais curta, que agitava a região ainda abandonada, próxima ao Convento das Mercês. Essa fazia o percurso mais curto: só ia até a praça João Lisboa e voltava. Depois de certo hiato e carnavais sem bandas, surge no final dos anos 1990, a Bandida, que também reforçava os laços originais com a Banda do Baixo, fazendo a festa na Beira Mar, perto do Largo de Beckmão. 

Nos primeiros anos também saía em circuito muito parecido com a antiga matriarca, mas depois, com o acirramento da violência urbana, lançou o modelo de “banda parada”, que não desfila. Todas essas bandas reafirmavam o poder de congraçamento coletivo das festas carnavalescas e representavam uma oportunidade de gozar o centro da cidade de maneira diferenciada, à pé, dançando, rindo, sentando e mijando onde desse, brincando com desconhecidos, fazendo a cidade viver. 

Ao mesmo tempo, essa sensação começou a se espalhar pelos maiores e mais distantes bairros da região periférica, onde a população também queria divertir-se sem ter que vir ao centro da cidade. Marcaram época as Bandas do Kantão (na COHAB III) e a Los Periquitos (do COHATRAC), ainda em atividade, só que agora “in door”. Muitas outras bandas de vida curta surgiram e desapareceram em outros bairros sem deixar vestígios.

Depois de muitos carnavais, a Bandida foi transferida para região nobre da lagoa e o centro da cidade ficou órfão das bandas carnavalescas. Em 2012 essa tradição foi renovada pela Banda da Bicicletinha, que começou de forma incipiente e descompromissada (como, na verdade, começam quase todas), concentrando na Praça Pedro II. É de notar a preferência da população por essa região do centro administrativo e comercial, próxima à Beira Mar, para promover e organizar as maiores bandas que agitaram a cidade. Isso não é à toa. Brincar o carnaval nos locais “sérios”, sisudos e impessoais do dia a dia, significa tentar inverter um pouco essa lógica.

 Ficar bêbado na porta do palácio e da prefeitura, mijar na porta da igreja, tudo isso revela o poder questionador e subversivo do carnaval perante os poderes instituídos, que muitas vezes não conseguem cumprir suas funções a contento. Por isso as bandas preferem o coração da cidade, os locais de maior visibilidade e mais urbanizados, dos quais o cidadão comum se sente alijado durante todo o ano. O carnaval é o momento de retomar a cidade, assumi-la, dominá-la, festejá-la. Por isso as bandas despertam tantas críticas.


 A Bicicletinha logo foi relocada para rua do Egito, para o exato local de onde saía uma das suas predecessoras, a Banda do Grafitte. Certamente, São Luís é outra, o povo que acorre à ela é de outro perfil, mas o espírito é o mesmo. O fato de não poder ocupar o espaço inicialmente escolhido (a Praça Pedro II) demonstra mais uma vez que nossos gestores culturais não sabem aproveitar as manifestações espontâneas da população que se organiza para brincar o carnaval. No largo da Sé, a paisagem é muito mais bonita, o espaço é mais amplo, a cidade parece bem mais bonita que na porta do cine Roxy. Isso atrai turismo! Mas nós perdemos o hábito de ocupar a cidade poeticamente, só sabemos censurar e proibir. É fato que reunir multidões de forma ordeira é hoje um desafio do qual os poderes constituídos não podem se furtar. Isso pode comprovar sua eficiência.  Renunciar à festa só reforça os grupos desordeiros, que passam a determinar o que se pode ou não fazer. O Estado tem o dever de oferecer ao cidadão condições de lazer seguras e higiênicas.  Nesse ponto São Luís perde pontos, comparada às outras capitais que promovem grandes festas carnavalescas. Em Recife e Salvador, as cidades são adaptadas para o carnaval. Uma série de equipamentos e serviços passam a ser oferecidos ao público que ali frequenta durante os festejos.


Outro ponto a ser lembrado, é que por serem conjuntos formados por poucos músicos, um local cercado por prédios ajuda muito na reverberação do som, daí a preferência das bandas por lugares mais urbanizados, onde a estrutura arquitetônica contribui com uma acústica mais adequada do que em locais muito abertos, como na beira da praia, onde o som se perde na ventania. Quando a população elege um local para fazer uma banda carnavalesca tudo isso está em jogo.

Quase esquecido do dinheiro, continuei a percorrer o centro da cidade, agora por pura curiosidade de ver o “efeito bicicletinha” naquela região, antes desértica e triste. Foi encantador rever o povo andando pelas ruas sem medo, em grupos maiores ou menores, namorados se agarrando pelos cantos, rapazes fazendo arruaça, casais com crianças fantasiadas... São Luís precisa disso. Precisamos recuperar nossa alegria de viver. No centro, na periferia ou em qualquer lugar. Viva o carnaval!

Eugenio Araújo
Professor do dep. De artes-UFMA


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