Os tempos entrelacados de Ubiratan Teixeira
Em depoimento emocionado, o poeta Nauro Machado destaca a importância da obra do cronista, jornalista e teatrólogo Ubiratan Teixeira.
Nauro Machado
Especial para o Alternativo
Especial para o Alternativo
Sei que por fim te exauriste no poço profundo da tua memória irrecuperável. Permite, no entanto, querido amigo, perdoando-me por isso, que eu te cerque pela lembrança com que pretendo agora fazer-te presente no momento em que te rememoro sem poder sequer chegar superficialmente àquilo que foste – ou ainda és – no indiviso e incognoscível ser a já estar para sempre sepulto em alguma parte deste universo a fazer-nos efêmeros passageiros de uma eternidade ausente.
Não vou estender-me sobre a diversidade criadora em que se cumpriu tua vida, como escritor fecundo e pertinaz do nosso verdadeiro cotidiano, a que imprimiste tua visão cheia de paradoxos existenciais, claramente identificáveis, como o uso desmedido de uma imaginação a realizar-se às vezes por fora do contexto real dos acontecimentos verídicos, fruto de tua experiência adquirida durante dezenas e dezenas de anos como repórter que foste, imprimindo tua visão pessoal àquilo por ti visto em suas mais diversas e anômalas situações analisadas pela força recriadora dos autênticos ficcionistas, o que sempre foste, desde que te conheci ainda nos bancos do nosso inesquecível Colégio São Luiz.
Foste para mim, desde então, o embrião daquele escritor que viria mais tarde a escrever a novela A Vela ao Crucificado e de tantas outras que viriam colocar-te ao lado dos melhores ficcionistas brasileiros dedicados a esse gênero literário, além de muitas outras, sem falar, sobretudo, do teu inigualável livro Sol dos Navegantes, com o qual te ombreias com os maiores escritores do gênero no Brasil, colocando-te ao lado do também maranhense José Louzeiro, que imprimiu uma força invulgar ao assim chamado “romance-reportagem.”
A ti, para projetar-se nacionalmente, faltou apenas fazer-te “expelir” de tua terra berço ou dela ser “expulso”, para projetar-se além fronteiras, como aconteceu com o nosso felizmente ainda vivo José Louzeiro, ou com Ronaldo Costa Fernandes, que se auto-exilaram por opção pessoal.
Transcrevo aqui, para que alguns saibam o significado real de quem és no contexto daquilo que nos vale, o que sobre ti eu escrevi na apresentação do teu livro Pequeno Dicionário de Teatro:
“Com uma viagem que ganhou à Europa para estudar, graças à sensibilidade e visão de Paschoal Carlos Magno, Ubiratan Teixeira logo se revelaria depois, voltando para São Luís, como o mais respeitado teórico e profundo conhecedor do Teatro, entre nós, aqui já havendo, para contrabalançar o provincianismo cultural da terra um pequeno grupo de escritores católicos tendo à frente o depois padre João Mohana e poucos outros, que se propunha, com seriedade, talento e propósito modernista, à revitalização de nosso Teatro, por meio de um enfoque dado principalmente pela problemática religiosa.” E adiante: “Ele, Ubiratan Teixeira, é, dessa maneira, na sua função exemplar de teatrólogo, contista, romancista, repórter, memorialista, professor de arte dramática, cristão não ortodoxo, católico sem aura de santidade e incansável estudioso da literatura universal, um dos nossos raros e conscientes escritores que se tem negado a escamotear os meandros da psique humana, onde a alma pulsa como mercadoria inegociável, elastecendo aquela vontade schopenhaureana a nominalizar o mundo como vontade e representação.”
É fácil para mim, neste instante, escrever sobre Ubiratan Teixeira.
Tempo - Se para Cardarelli “a época que precede a morte se parece com a espera sob o relógio da estação, da qual se contam os minutos“, a imagem que agora me volta do amigo Ubiratan Teixeira, quando o vi, pela última vez, sentado num banco que fica logo em frente ao velho e paralítico relógio da Praça João Lisboa, cujos ponteiros se acham parados há longo tempo, é a de um cansado octogenário, suas mãos segurando exemplar de um velho Gibi, revista que tanto lhe encantou (como a mim) a vida a se fazer e ali se exaurir, toda ela, numa província que se vai desmoronando sem magia ou beleza nenhuma para os seus novos moradores além da Ponte José Sarney, e da qual ele, Ubiratan, fez o habitat natural e permanente para o desenvolvimento ficcional de muitos dos admiráveis livros que compõem sua multifacetada obra de escritor.
Esse velho relógio, naqueles minutos para mim parados, talvez já fosse a premonição daquilo que ele talvez já soubesse ou intuísse como proximidade inadiável do seu próximo fim, o que me levou a voltar para o começo do que juntos fomos como jovens alunos do Colégio São Luiz, sabendo, como nos versos de T.S.Eliot, que “o tempo presente e o tempo passado / estão ambos presentes no tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado.”
Para muitos, ou quase todos os habitantes desta nova São Luís, ou para alguns de seus velhos náufragos, o nome de Ubiratan Teixeira talvez nada signifique, não deixando sequer um eco nesses ouvidos abertos somente ao alarido momentâneo das azucrinantes vozes de cuja mediocridade dá sobeja prova o marketing criminoso dessas emoções a extrapolarem para o comércio das coisas vendáveis e fáceis.
Ah, velha, querida e morta Praça João Lisboa, a fazer-me voltar, como ele certamente fazia naquele instante, ao Bar Anjo da Noite, que ficava no abrigo lá encravado e de cujos anjos noturnos – e não apenas de um só – roubávamos as asas a nos conduzirem, em noites intermináveis, a reinos e mundos construídos pela leitura das eternas obras literárias com o que ali já sabíamos ser o destino inalienável a ser por nós cumprido muitas vezes (ou quase sempre?) como fatalidade redentora do barro humano.
Mas valeria a pena repetir tudo isso, essa coisa ou dizeres esdrúxulos e amorfos, na visão atrofiada dos novos tecnocratas desta nossa hora, passivos réus de uma alienação mecanicista, filhos de uma tecnologia quase sempre indutora de crimes infernais, arredios do que realmente vale a pena e a dor de serem vividas, pela ignorância interior de que são possuidores, sem a fundamentação de uma cultura humanística, infelizmente a faltar até mesmo nos mais tradicionais centros universitários do mundo contemporâneo?
Ou apenas estamos fazendo uma inútil saudação a um grande morto, falando de uma possível sua necessidade para tornar possível a ressurreição da antiga grandeza derruída de uma Terra que já foi tão grandiosa e agora a ratificar, para orgulho de outros alienígenas, hoje seus presumíveis herdeiros, a decadência cultural do que hoje somos?
Lembro-me, Ubiratan, de quando certa manhã nos fizemos passageiros de uma pequena canoa, pretendendo com ela chegar até Alcântara. Quase ao meio-dia dessa quixotesca aventura, o barqueiro que nos conduzia, devido o anormal arfar das imensas ondas, quase a cobrir-nos na pequena embarcação, resolveu voltar, contra os nossos pedidos de alcoolizada coragem, ao cais de onde partíramos e do qual ao longe víamos aquela Alcântara por nós tão querida como mulher desejada.
Lembrei-me desse episódio, pois me veio de súbito, ó amigo Ubiratan, a certeza de que nessa tua última e definitiva viagem, já deverás estar chegando às praias de uma cidade igual à sonhada Bizâncio do poeta Yeats, lugar onde “pousado cantarás em ramo de ouro, como um pássaro, o que passou e passará e sempre passa“.
0 comentários:
Postar um comentário