Os resultados do carnaval: com julgamentos conservadores e até reacionários o samba carioca perde o papel de vanguarda e se aproxima cada vez mais do folclore turístico.

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Os resultados do carnaval: com julgamentos conservadores e até reacionários o samba carioca perde o papel de vanguarda e se aproxima cada vez mais do folclore turístico.


Eugênio Araújo– Prof. Dr. Em História da Arte/UFMA.

Comissão de Frente, da Unidos de Viradouro 


            A principal diferença entre Arte e Artesanato é que a primeira inclui uma investigação permanente não só pela excelência formal, mas também pela sofisticação dos conteúdos, das mensagens que pretende emitir. A principal diferença entre Cultura Popular e Folclore é que a primeira é portadora dos anseios das classes menos favorecidas, não é só brincadeira e espetáculo, mas estratégia de resistência, luta e reivindicação. Tanto o Artesanato quanto o Folclore insistem numa eterna repetição, cujo maior mérito talvez seja o sustento dos seus produtores. O turismo aparece aqui como verdadeiro patrono e mantenedor do Artesanato e do Folclore, pois apelando para o exótico, a produção artesanal e folclórica tem no turista seu consumidor preferencial.

            O carnaval tem importantes dimensões artesanais e folclóricas, mas nunca se reduziu a isso. Os aspectos artístico e autenticamente “popular” da festa continuam atuantes, perfilando a festa como uma das mais relevantes oportunidades de expressão individual e coletiva na sociedade contemporânea. “Expressão”, essa palavra tão em voga ultimamente, quando vemos suicídios suspeitos na Argentina e bombas explodindo nos jornais franceses, simplesmente porque as pessoas falaram o que quiseram. É isso mesmo: pelo direito de expressão até hoje se morre e se mata. 


Mas parece que tudo isso tem um peso maior lá fora, e sobretudo no carnaval brasileiro quando se fala de “expressão” estamos sempre nos referindo à seu aspecto corporal mais imediato. O carnaval para nós é a “festa do corpo”, pouco haveria ali para pensar; aliás, a vulgata construída em torno da festa a coloca como época do “esquecimento, da inversão de valores, do absurdo, da irresponsabilidade, etc....” É certo que no carnaval há doses elevadas de tudo isso, como em todas as outras grandes festas. 

O que me incomoda realmente é o encobrimento da parcela racional do carnaval, com todas as graves consequências disso. Assim, quase tudo que acontece no carnaval “deve ser esquecido”, porque só diria respeito àqueles “três dias de loucura”. Como estudioso da festa e com ela preocupado durante o ano todo, discordo completamente disso. No carnaval a sociedade se auto-revela com seus desejos, suas frustrações, suas estratégias de resolução de problemas, seus julgamentos, suas formas de ser e proceder. O carnaval é uma grande Revelação.

 Por isso me preocupa muito os resultados oficiais do desfile do Grupo Especial carioca este ano. Maior carnaval sambista do país, ele dita o modelo a ser seguido por escolas de todo país, o que acontece no Rio tem repercussão até internacional. O que vimos este ano, no nível do julgamento e do resultado final foi uma grande afirmação do pensamento conservador e até reacionário.

 A escola campeã, a Beija-Flor, levou para avenida um enredo sobre país governado por uma ditadura há mais de 30 anos, embalada por um samba repetitivo e insosso que nunca tocou nas rádios. Aqui ela subverteu tanto a cultura popular quanto a arte: como diz Canclini, quando uma manifestação popular deixa de traduzir os anseios populares, ela não merece mais este nome; e um samba medíocre diminui a tradição de excelência do samba-enredo carioca. 

Um elogio à ditadura foi o que o corpo de júri considerou digno de vitória este ano no carnaval carioca, concedendoà Beija-Flor as maiores notas em quase todos os quesitos. “Ah, mas ela tava linda!” – dirá a maioria. OK, mas não se trata só de beleza física, mas também de beleza interior. Nas escolas de samba, a beleza aparente(forma) é dada pelos desfiles, mas a beleza interior (conteúdo) é deduzida a partir do tema-enredo escolhido. Uma obra de arte requer equilíbrio sensato entre forma e conteúdo. O que vemos na escola carioca hoje é uma total primazia formal, em detrimento dos conteúdos expressados. É que se chamava comumente de “beleza vazia”, atualizado no jargão “loura burra”.

Explico-me! Boa parte da produção das escolas de samba é feita pelas classes populares, mas a administração e gerência financeira das agremiações há muito tempo está nas mãos das classes médias e elites empresariais. São grupos que almejam primordialmente o lucro obtido através de uma “atração turística”, que por isso mesmo não poderia mais exercer livremente seu papel de crítica e reivindicação.

 O turista não gostaria de ser incomodado com os problemas alheios, só quer ver coisas bonitas e agradáveis. Essa tendência de “folclore turístico” fica bem clara se observamos os enredos das seis primeiras escolas, que voltarão para avenida no Desfile das Campeãs:

1.      Beija-Flor – Guiné
2.      Salgueiro – Cozinha mineira
3.      Grande Rio – Jogo de Baralho
4.      Tijuca – Suiça
5.      Portela – Rio de Janeiro
6.      Imperatriz – Mandela/África do Sul


Excetuando a Grande Rio, com seu enredo gratuito sobre Baralho, todas as outras formataram os chamados “enredos cartão-postal”, homenageando um país ou cidade, realçando somente os aspectos positivos da sua geografia, história e cultura. A intenção de conseguir financiamento extra está sempre por trás desses enredos. Portanto, dourar a pílula é parte do contrato.


 Assim, a Guiné aparece como paraíso africano, Minas como paraíso gastronômico, a Suiça como paraíso alpino, o Rio como paraíso de todos os paraísos e a África do Sul de Mandela como “paraíso em construção”, devido à atuação do grande líder negro. Todo o discurso é paradisíaco. Tudo isso foge à realidade num grau que beira a esquizofrenia. 

O desfile carioca vem sendo dominado há anos por sambas e enredos alienados, que não conseguem mais emplacar sucessos radiofônicos porque não se identificam com os ouvintes, não há mais empatia com o povo brasileiro. Sim, visualmente o evento continua lindo e as escolas merecem todos os elogios pela excelência de mão-de-obra e organização. Mas samba não é só isso. Como dizia Vinícius de Moraes, “é preciso um pouco de tristeza pra fazer um samba de verdade...”. 

Talvez nem tristeza, só uma dose maior de consciência.Samba não é só música de festa, é também música de resistência e luta. Hoje, o único gênero que parece cumprir esse objetivo em relação à negritude, é o Rap. Daí a grande aceitação da juventude negra pelos seus derivados, sobretudo o Funk. Não é apenas uma questão de gosto, como se diz comumente, mas sim de anseios atendidos.

 O funk se encaixa melhor dentro de definição de “cultura popular”, falando dos anseios e das formas de ser e viver dos seus produtores. Ele é feito, cantado e dançado durante o ano inteiro pelas classes populares cariocas, fala do Rio como ele é, bonito, mas violento; aberto, mas cruel; assustador, mas atraente. O funk explora as incongruências e paradoxos da cidade, sem deixar de ser divertido e alegre. Não tem a preocupação de mascarar, disfarçar nem falsear a realidade.


E o samba carioca? Virou coisa pra turista. Nos sambas enredos as críticas estão quase proibidas, os compositores só podem elogiar. Os enredos mais autênticos e com maiores doses de visão crítica foram solenemente penalizados, como é o caso da Mocidade, União da Ilha e Vila Isabel – esta última, depois de um belo desfile sobre música erudita, com um dos mais belos sambas do ano, quase foi rebaixada! Assim, o jurado e a LIESA indicam claramente para todas as escolas que caminhos devem seguir para galgarem algum campeonato, ou pelo menos os seis primeiros lugares. 

É uma pena! Nos últimos anos tenho visto a retração e decadência do carnaval sambista Brasil afora, em grande parte devido a isso. O Samba perdeu o pé da realidade. Não é só o carnaval baiano, não é só a falta de dinheiro e a precariedade dos artistas das pequenas cidades. É falta de adequação. As escolas de samba já não se adequam ao seu povo, falam de coisas estranhas, desconhecem a vontade dos próprios sambistas. Assim, elas deixam de interessar à maior parte da população.

 A classe média carioca já abandonou as escolas há mais de 10 anos, quando começou a formatar o “novo carnaval de rua”. Mais educada e com senso crítico mais apurado, ela logo percebeu que a manifestação não correspondia mais aos seus anseios. A classe média dá grande valor ao direito de expressão. Hoje ela já não paga pra desfilar na Sapucaí, prefere as ruas e praças onde organiza seus próprios blocos, faz seus próprios sambas, canta e dança como quiser. Sem regras absurdas como “não pode deixar cair o chapéu!” e sem penalidades.

E as escolas de samba? No Rio, as do Grupo Especial se aproximam cada vez mais de “folclore turístico” e com isso a manifestação perde muito do seu encanto. Hoje elas são lindas e sem sentido. As dos Grupos de Acesso lutam para sobreviver e ascender ao Grupo Especial e se adequarem a tal modelo, reforçando o círculo vicioso. No resto do Brasil elas estão desaparecendo. Há pouco interesse por uma manifestação cara, trabalhosa, mas que pouco pode acrescentar no nível das visões a respeito de nós mesmos. Por isso se afasta do povo e da arte, hoje fica melhor como artesanato e folclore turístico.




            

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