Depois do carnaval - Cacá Diegues

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Depois do carnaval - Cacá Diegues

Comissão de Frente, da Flor do Samba, no carnaval de 2015

Me enjoa um pouco aquele programa de televisão disfarçado em desfile de escolas de samba, que mais parecem evoluir num palco em Las Vegas

Depois do carnaval pode ser o melhor período do ano para qualquer um de nós. Não me refiro aos mal-humorados que não gostam da festa, aqueles para quem o carnaval é uma alienação irresponsável e é por isso que o Brasil não vai pra frente. Sempre gostei e frequentei o carnaval, embora eu e ele estejamos um pouco cansados demais para novas celebrações.

A ressaca depois do carnaval pode ser um alívio para que nos lembremos de que, quando nos deram a oportunidade de fazê-lo, rimos e gozamos intensamente o direito de viver, mesmo que com data marcada e posteriores enjoos e dores de cabeça.

Lembro-me de um mote dos anos 1960 ou 70, não sei bem: quem dançou, dançou; quem não dançou, dançou. O jogo de palavras servia para explicarmos que o importante era dançar os ritmos que o mundo tocava, senão “dançávamos” — o que queria dizer, na gíria da época (e acho que na de hoje também), que perderíamos o bonde da vida.
A ressaca depois do carnaval pode ser também uma forma de o nosso corpo anunciar que não está feliz em ter que voltar a pensar nas desgraças do Brasil e, se costumamos assistir ao “Jornal Nacional”, nas desgraças do mundo. Como diz o filósofo português contemporâneo José Gil, depois do jornal da televisão podemos suspirar e dizer “é a vida”, e irmos dormir em paz. Porque essa “vida” a que estamos nos referindo não se passa em nosso espaço no mundo, não pertencemos a ela, não temos nada a ver com ela. A não ser que a notícia seja a do aumento do preço do transporte urbano e nós sejamos operários em construção.
Durante o carnaval, a vida (essa que está em torno de nós) parece não ter fim e rezamos para que tão cedo não chegue a quarta-feira que nos entregará nas mãos os deveres que adiamos, os compromissos que deixamos para depois do carnaval. Mas também sabemos que aquela quarta-feira nos entregará de volta a outra vida (a que está fora de nós) e, quem sabe, ainda tenhamos alguma esperança de vivê-la melhor.
Se dermos alguma sorte, depois do carnaval, evitar a recessão financeira que nos deixará sem emprego e a falência da Petrobras assaltada pelos políticos pode não ser mais um sonho impossível, mas milagres tangíveis, tornados viáveis pela consciência de que podemos ser mais felizes. Como fomos na semana passada.
Francamente, não sei mesmo como anda o carnaval carioca. Me enjoa um pouco aquele programa de televisão disfarçado em desfile de escolas de samba, que mais parecem evoluir num palco em Las Vegas. Não costumo mais acompanhá-lo. Não acho que o carnaval tenha sido inventado para ser assistido na imobilidade de camarotes e arquibancadas com divisão de classes, nunca foi assim. Abro mão de vê-lo, sobretudo quando o campeão do desfile é financiado por um ditador africano para elogiar seus malfeitos. Las Vegas e Obiang Nguema que se mereçam.
Por isso, me interesso mais pelo crescimento dos blocos, uma velha novidade que se renova (parece!) em cada bairro e, com mais adesões, no Centro da cidade. O bloco é um modo de você escolher sua turma, de preferência entre vizinhos de bairro, um modo de selecionar a partição de sua felicidade, um voto de pertencimento a uma comunidade.

Talvez minha simpatia pelo bloco esteja no fato de que ele seja um meio caminho entre a solidão de “nossa” vida e a adesão a uma “vida do mundo”, como dizia o mesmo José Gil. Voltando ao jornal da televisão, mesmo com todas as desgraças anunciadas, podemos dormir em paz a cada noite, depois de desligar o aparelho, pois não temos nada a ver com uma tsunami no Japão ou com massacres no Oriente Médio. Isso são coisas que se passam com os outros distantes, em outro mundo do qual sou mero espectador, como o sou de um desfile de escolas de samba. Um mundo prisioneiro da televisão, que só volta a existir quando ligo de novo o aparelho.

Pode ser que o excesso de informação em nosso tempo, esse tornado de notícias que podem ir da degola de um prisioneiro pelo Estado Islâmico ao nascimento de um ursinho panda num zoológico da China, tenha terminado por nos deixar insensíveis à maioria delas, até mesmo pela necessidade de continuarmos vivendo em meio aos horrores.

O carnaval nos exime de culpas, somos obrigados a esquecer o que os jornais e a televisão nos contam. E essa é uma regra inserida nos deveres de cidadania do nosso país, temos que obedecê-la com gosto e prazer. Depois do carnaval, aceitaremos as dores privadas e públicas com mais resignação, pelo menos até o próximo carnaval.

Assim como também podemos tornar esse longo tempo de um ano, entre um e outro, matéria de nossa reflexão — por que estávamos tão alegres e divertidos, por que fomos tão felizes naqueles quatro dias? Temos que aprender a fazer alguma coisa para que o sentido do que nos ensina o carnaval não se perca depois do carnaval.
Cacá Diegues é cineasta
carlosdiegues@uol.com.br

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