Novo livro de Nauro Machado será lançado dia 02 de agosto na AML
“Canções de roda aos pés da noite”, livro
inédito do escritor será lançado na terça-feira, às 19h, na Academia Maranhense
de Letras
A
família do poeta Nauro Machado, juntamente com a Academia Maranhense de Letras,
lançará na próxima terça-feira (dia 2 de agosto), às 19 h, dois livros do
escritor, Canções de roda aos pés da noite,
livro deixado pelo poeta que faleceu em novembro do ano passado, e Erasmo Dias e Noites, reeditado agora pela Academia
Maranhense de Letras. Os lançamentos ocorrerão no salão da AML; o primeiro,
pelos 81 anos de Nauro Machado, e, o segundo, pelo centenário de nascimento,
este ano, de Erasmo Dias.
A
programação prevê a exibição do curta Infernos, de
Frederico Machado (com 12 minutos), seguido de um recital com poemas de Nauro.
Seguindo-se à apresentação do recital, serão lançados o livro de Nauro, editado
pela Contracapa do Rio de Janeiro, com fotografias de Márcio Vasconcelos, e Erasmo Dias e Noites.
Transcrevemos nesta oportunidade uma
crônica de José Chagas, publicada em 2006 sobre “Infernos”, onde Nauro, como
personagem de si mesmo, recita alguns de seus poemas, vivenciando o terrível
clima de São Luís no costumeiro périplo e desespero do poeta, cidade que lhe
sangrou a alma e que foi potencial alvo e personagem do seu canto. O poeta, num
de seus poemas mais dolorosos e veementes, queixa-se:
“Vozes
me dizem: “Eh, tu aí! E me mandam bater
serviços
de excrementos em papéis caídos
numa
máquina Remington, ou outra qualquer.
E me
mandam para o inferno, se inferno houvesse
pior
que este inumano existir burocrático.
E
depois há o escárnio de minha província.
E a
minha vida para cima e para baixo.
(...)
Estranhos
uns aos outros, que faço eu aqui? (...)”
Esse escárnio, de alguns, e esse
existir burocrático, cercado de humilhações, eram-lhe compensados, felizmente,
pelo respeito e consideração da melhor crítica literária, do povo de São Luís e
dos amigos. Ele sabia como ninguém “que não se vive impunemente em São Luís do
Maranhão.”
A família de Nauro Machado e a
Academia Maranhense de Letras convidam admiradores do poeta para as homenagens
que lhe serão tributadas pelo seu aniversário neste próximo dia dois de agosto.
Um
Milagre No Inferno
José Chagas
Uma coisa é o conceito de imagem na
poesia, outra é a configuração da imagem no cinema. Duas linguagens que sempre
nos parecem inconciliáveis, como se verifica na dificuldade que há em se levar
para o cinema uma história narrada antes literariamente. É claro que a imagem
na poesia resulta de um processo mental e é produzida pela imaginação,
assumindo assim um valor psicológico como diria Octávio Paz. A imagem no cinema
está ao alcance de nossa visão, entra-nos pelos olhos, dispensando-nos de
imaginá-la ou de formulá-la com algum esforço mental. Pode uma imagem
cinematográfica ser poética, mas não é fácil uma imagem poética ser
cinematográfica. Como então traduzir um poema no cinema, quando nos achamos
aptos a produzir, com palavras, imagens que nenhum processo fotográfico é capaz
de captar?
Essas ideias um tanto óbvias me
vieram à mente depois que assisti a um milagre da arte, na fusão de imagens
mentais e visuais concentradas numa só que, ao mesmo tempo, real, virtual,
abstrata, nos deu, não o quadro dantesco medievo, já distanciado de nós, mas a
panorâmica naureana que, em nossos dias, no filme Infernos, revela-nos o homem,
este sim, verdadeiramente integrado à cidade com a cidade visceralmente contida
nele, e embutidos ambos no contexto em chamas de fornalha supliciadora dos atos
e fatos de nossa natureza anímica. Revela-nos também uma São Luís crucificada,
sofrida em seus tormentos, suas angústias, suas náuseas. Um milagre
poético-cinematográfico, no inferno da condição humana, e em que a poesia é,
simultaneamente, ouvida e vista, na total expressividade de sua força
lírico-dramática e na concretização ontológica de todas as vivências
existenciais.
No filme, o poeta Nauro Machado se
apresenta como ele é: dionisíaco, diabólico, mas ao mesmo tempo puro e sacro,
visto que o inferno também pode purificar. Sabe-se que todo grande poeta tem de
descer às geenas para sua temporada de catarse, de purgação. Não é só o
purgatório que faz isso. Mas o poeta não desce lá para condenar-se a si mesmo,
porque já leva a sua danação como carta de alforria, vazada na própria lâmina
de sua ardente ânsia demoníaca. O poeta é maior que todo o inferno. Não cabe
dentro dele. E é satanicamente livre. Circula por lá como Dante circulou assistindo
a todas as tragédias por que passa a humanidade. O inferno lhe é uma estação,
um ponto de partida para a escalada tortuosa até o paraíso. E Nauro é poeta
antes do poema, dentro do poema e além do poema. Está entre os que tanto
conhecem a poesia da vida como a vida da poesia e sabe quando ambas se fundem e
se confundem consubstanciando-se em poemas forjados no fogo infernal e
alucinado dos dias. Para isso recebeu o mesmo sopro augusto de outro Augusto
que se confessou um “monstro de escuridão e rutilância”. O filme revela, pois,
toda a rutilação desse nosso monstro satânico-sagrado, e o tira intacto de sua
escuridão. Ser poeta é duro e dura toda uma existência, bem disse ele.
As chamas infernais lhe fervem as
veias, põem em ebulição as misteriosas águas em que ele mergulha até o mais
fundo de sua alma, conhece a natureza de todos os naufrágios, de todos os
abismos abertos aos desejos suicidas e aos que se embriagam por compaixão para
com o mundo que os cerca. O filme é magistral registro de sua passagem pelo
inferno, a que ele próprio assiste, agora, liberto para o seu purgatório no
dia-a-dia, pois a verdade é que o poeta hoje já não é o mesmo, pelo menos do
ponto de vista daqueles que não sabiam vê-lo senão pela decorrência dos efeitos
etílicos. Daí eu haver dito que o inferno também pode ser lugar de purificação.
E é, não resta a menor dúvida.
Aliás, no filme, o que se tem de
observar não é a embriaguez pessoal do poeta, mas a embriaguez da própria vida
a persistir às tontas pelos meandros a que é arrastada, por nossos becos e
vielas, numa cidade que, por sua vez, cambaleia diante de nossos descuidos, de
nossos desleixos, e por isso é que ali o poeta desaba juntamente com ela, tal é
o seu amor à urbe de onde nunca quis sair, por mais que lhe oferecessem oportunidades
lá fora. Infernos é, portanto, também um protesto. Uma chance para a poesia dar
o seu grito de alarme, que ecoa na solidão do mundo, e também mostrar-se não só
aos ouvidos, mas aos olhos espantados dos que ainda não haviam tomado
conhecimento dela. E só um cineasta de grande talento poderia nos dar uma obra
assim.
Pois cabe-nos perguntar agora: – Como
pôde tudo isso passar da forma abstrata do poema para o registro visual da tela
cinematográfica, numa tão extraordinária expressão imagística que eleva o filme
Infernos à categoria de um precioso monumento, quando, em circunstâncias
outras, seria, quando muito, uma simples peça documental? Como pôde realizar-se
o milagre de que falei acima? E é aí que se vê mais uma vez como vida e poesia
se mesclam, se imiscuem, se integram, de tal modo que Nauro já não é apenas o
homem-poeta, mas a própria poesia em pessoa, inclusive estabelecendo até uma
determinação liricamente genética, pois tão poesia é ele que não poderia gerar
outro ser senão como poeta também, embora noutro plano da linguagem. Não fosse
a mãe outra fonte de poesia. E eis uma lírica família, no melhor sentido da
expressão.
Infernos é produto de pai e filho, na
mais íntima combinação existencial, porque não se trata de um mero encontro
entre os dois, mas na natural extensão de um no outro, no prolongamento de uma
espiritualidade que nem sempre é comum entre pai e filho. Mas aqui vemos que
Frederico Machado, o filho, é tão poeta no cinema como Nauro Machado, o pai, o
é na literatura. E eis, portanto, um filme de carne e espírito, de cruciante
verdade, porque é o testemunho ou a confissão nua e crua de uma alma bradando a
consciente aflição de sua dolorosa esperança. Um filme em que a arte se reparte
em dois e se fecha na unidade de sua grandeza única. Um curta que é longo.
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