400 anos de São Luís, 40 de Sarney, 8 ou 3 milhões para Beija-Flor: os números e a realidade por trás deles
Eugênio Araújo (*)
Mal terminou o carnaval 2011 e já se fala no de 2012 por conta da celebração do quarto centenário da cidade de São Luís, escolhida como enredo da tão afamada quanto suspeita Beija-Flor de Nilópolis, do Rio de Janeiro. Ouve-se discussões acerca do valor da cota de patrocínio do governo do estado para a escola, se de 8 ou de 3 milhões de reais, formam-se grupos contra e a favor, e grupos de artistas e produtores culturais para acompanhar o processo. Como especialista da área, gostaria de dar minha contribuição ao debate e convidar o leitor a algumas reflexões.
Já sabemos que a cidade de São Luís chegará capenga aos seus 400 anos: envelhecida antes do tempo, corroída pelos transtornos das metrópoles (mesmo sem nunca ter sido uma), padecendo dos males dos aglomerados subdesenvolvidos: com favelas pululando e crescendo a cada dia sem esgoto, sem água encanada, sem vias transitáveis, sem iluminação e esquemas de segurança e saúde públicas que funcionem a contento. Não haverá o que comemorar e muito dessa dívida, deve-se ao grupo político que domina o estado há mais de 40 anos, a família Sarney e seus sustentáculos, que incluem artistas e produtores culturais.
Os Sarney dizem já ter feito muito pelo Maranhão, mas a capital do estado não é uma prova disso. Aqui, mesmo aquelas estratégias que deveriam contribuir para melhoria deram errado. A titulação da cidade como “Patrimônio Mundial” parece não ter surtido nenhum efeito positivo: o centro histórico de São Luís nunca esteve tão decadente, com casarões e casinhas abandonados, ruindo sem qualquer atenção dos proprietários e do poder público; as ruas são um circuito de obstáculos para os carros, as calçadas para os pedestres; as praças estão desfiguradas e tomadas pelo comércio informal, tudo cheira à depressão. Andar pelo centro de São Luís é uma experiência difícil e triste, sobretudo para quem o conheceu nas décadas de 1970 e 80.
Mas o tempo não pára. As classes médias sempre abandonam os centros das cidades quando se abrem novas áreas nobres de moradia. Em São Luís, isso se deu com os bairros praieiros, sobretudo depois da abertura da Avenida Litorânea. Mas não é só isso: a legislação coercitiva e os preços das reformas inibiram os particulares de cuidarem de suas próprias casas no centro de São Luís depois dos processos de tombamento – no plural porque foram três: o federal, o estadual e o municipal, abrangendo praticamente toda área central antiga e moderna da capital, e restringindo o poder de manipulação do proprietário sobre seu próprio imóvel. Não se podem abrir garagens nem modernizar os interiores, tudo isso é crime aos olhos do IPHAN. Por conta disso a classe média abandonou o centro de São Luís, mais que em outras cidades. Nos últimos 20 anos São Luís favelizou-se, arruinou-se e enfeiou-se sob os olhos guardiãs do IPHAN. Que política de conservação é essa cujos resultados são exatamente contrários aos que ela se propõe?
Mas com certeza não é dessa São Luís que a Beija-Flor vai falar na avenida. Ela vai mostrar uma São Luís histórica idealizada, uma São Luís turística e repleta de atrações folclóricas e gastronômicas, uma São Luís onde tudo vai bem. É conveniente para isso que ela se associe ao grupo político que sustenta esse discurso, o grupo Sarney, que sempre divulgou que o Maranhão mudou para melhor a partir da sua atuação. O desfile da Beija-Flor vai ser uma farsa financiada pelo poder público e orquestrada pelos especialistas em farsas no Maranhão – é preciso mais uma vez fazer o Brasil acreditar que o Maranhão vai bem e que a capital é o melhor exemplo disso. Vamos patrocinar uma grande mentira!
Lá se vão 3 ou 8 milhões para Rio! – um dinheiro mal investido num enredo tipo “cartão postal” que tem poucas chances de ganhar alguma coisa: todas as escolas cariocas que tem feito a opção de homenagear cidades, contando com patrocínio de prefeituras e governos de estado tem se dado mal. E São Luís não deve se achar especial por ser homenageada por uma escola que tem seu nome freqüentemente associado ao crime organizado e à corrupção, inclusive com a manipulação dos resultados oficiais dos desfiles. Há muito tempo a Beija-Flor vem sendo investigada pela polícia. E mais: ela não precisa do nosso dinheiro.
O montante total que uma escola do Grupo Especial carioca recebe anualmente passa dos 5 milhões de reais – isso é mais que suficiente para fazer qualquer projeto de carnaval. Nossos 3 ou 8 milhões representam um “extra” que não vai ser aplicado exatamente na avenida.
Enquanto isso, na São Luís de verdade, esta ilha perdida no Atlântico Norte, os planos para comemoração dos 400 anos caminham a passos lentos. Especificamente para o carnaval, ainda não ouvimos divulgação de nenhuma diretriz da festa pela prefeitura ou pelo governo do estado. Enquanto se manda para Beija-Flor um dinheiro que podia financiar o carnaval de todas as nossas escolas de samba, nem sequer sabemos sobre o que elas vão falar, quais serão os temas enredos, que aspectos da história da cidade irão abordar e como farão isso. É preciso ter cuidado para não fazermos feio na nossa própria festa de aniversário.
Se houver planejamento, mesmo com os parcos recursos de que dispõem, nossas escolas de samba podem dar uma contribuição importante para a festa. Os desfiles têm melhorado nos últimos anos. Só que elas precisam de orientação.
A Favela do Samba já divulgou uma proposta de enredo genérico: “São Luís, menina dos olhos do mundo” – uma colagem de informações rasteiras e lugares-comuns misturando história, folclore, artesanato, gastronomia, uma verdadeira salada mista sem sentido algum ou com todos os sentidos possíveis. Esse é o tipo de iniciativa que deve ser evitada. Se a Favela, com todas as suas virtudes, propõe um enredo desses, imagine se todas as escolas fizerem o mesmo: o desfile vai ser repetitivo, monótono e o que deveria ser uma festa excitante vai ser uma chatice com veios de idiotice. É mais interessante que a prefeitura, como promotora do evento, proponha um roteiro com várias opções de enredo, contemplando momentos e personagens distintos da história da cidade.
Afinal de contas são 400 anos, não 40 anos ou 40 dias. Há muita coisa a ser explorada, os 400 anos podem divididos em fases e tópicos: a fase colonial, a fase imperial e provinciana, a fase republicana, a arquitetura, o folclore, a gastronomia, os grandes vultos da história política e cultural, etc... Cada ponto desses dá um enredo diferente e que pode se debruçar profundamente sobre cada assunto. Se todos quiserem falar de tudo ao mesmo tempo, a coisa não ultrapassa o nível superficial. Mas o processo de orientação e planejamento deve começar desde já.
Certamente deve haver um aporte de recursos extra nesse ano de comemoração também para os grupos locais. Não será possível negar isso, quando aí já se vão 3 ou 8 milhões para Beija-Flor – isso prova que há dinheiro sim! E as escolas de samba ludovicenses devem recuperar seu poder de organização e barganha. Devem pressionar pelo aumento de verbas nesse ano especial. Se os cariocas merecem, nós maranhenses merecemos muito mais. Nós somos os donos da casa, somos nós que vivemos e aturamos essa cidade com todos os seus defeitos há 400 anos. E nada indica mudanças à vista.
(*) Prof. Dr. Do Departamento de Artes/UFMA
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