EXERCITANDO A MEMÓRIA, VEIO A EXPLICAÇÃO POR QUE NÃO DESFILEI NA FLOR DO SAMBA

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EXERCITANDO A MEMÓRIA, VEIO A EXPLICAÇÃO POR QUE NÃO DESFILEI NA FLOR DO SAMBA

                                                                         

Por Euclides Moreira Neto(*)

            Na segunda metade da década de 1970, participei do Laborarte, tendo chegado no ano de 1976 e lá ficado até por volta de 1982, portanto pude vivenciar um período fértil e ainda combativo de uma Organização Não-Governamental, considerada independente, atuante no meu cultural ludovicense e que se apresentava como alternativa para a formulação de política cultural para a cidade de São Luís e para o Estado do Maranhão, em que o foco principal de suas ações seriam as camadas subalternas da população, ou seja, aquelas menos favorecidas.    
       
            Durante esse período, pude perceber que a fundação do grupo nasceu da reunião de jovens ávidos por democracia para poderem se expressar livremente, portanto, jovens que contrariavam as orientações do regime militar que se instalara no poder com o Golpe de 1964. Eram jovens oriundos de todas as classes sociais – abastadas, pobres, classe média, etc. Enfim, eram jovens quase revolucionários. Assim nasceu o Labortarte – Laboratório de Expressões Artísticas, que se propunha a ser efetivamente um laboratório de experimentações artísticas para todas as áreas de expressões: música, teatro, dança, cinema, literatura, etc.
            Nesse período, realizavam-se reuniões periódicas para discutir as ações de investigadores e pedagogos, como Paulo Freire, estudando-se estratégias de como poderiam ser aplicados seus ensinamentos na prática do grupo; discutia-se como interagir a musicalidade da cultura popular com a música jovem feita pelos novos compositores, tendo surgido, por exemplo, Sergio Habibe com sua obra-prima Cavalacanga, que pela primeira vez fez uma fusão musical inteligente com nossos ritmos, entre outras ações.         
            Foi nessa época também que o cineasta Murilo Santos deu início ao movimento audiovisual maranhense, tendo realizado dezenas de filmes sobre as atividades do Laborarte, experimentando a prática de fazer cinema com o registro de peças teatrais e visitas a comunidades rurais. Entre as peças teatrais registradas, lembro de Um Boêmio no Céu, João Paneiro e Maré Memória. Tudo era feito na bitola Super 8, pois era a bitola que os jovens daquela época podiam se arriscar em produzir cinema, uma vez que o regime militar tentava de toda forma bloquear a ação cultural de jovens rebeldes.
                                                                                                                                 Também foi naquela época em que outros grupos de outras regiões puderam promover viagens de intercâmbio e encontravam no Laborarte um porto seguro para realizar esse tipo de intercâmbio. Exemplo clássico dessas viagens foi a curta temporada de mais ou menos 15 dias que realizou o grupo Novos Baianos (Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Baby Consuelo, entre outros) e ficaram hospedados no velho Casarão da Rua Jansen Muller,  interagindo com os maranhenses.                                         
               Essa segunda metade dos anos de 1970, foi rica em experimentações artísticas e culturais e pessoalmente pudemos viajar e atuar em peças memoráveis. Eu normalmente ficava no apoio técnico, mas quando faltava alguém tinha que cair em cena ou me travestir de algum boneco, como a personagem Manguda, que fiz por diversas vezes – lembro-me das apresentações feitas em Igaraú e na região de Pedrinhas. Lembro das viagens a Brasília, Olinda e Recife, participando de encontros de teatro e levando o espetáculo O Cavaleiro do Destino, um dos maiores clássicos produzido pelo Laborarte naquela época.
            Lembro-me das questões éticas e estéticas que o grupo se debruçava para realizar algo que fosse aceito como alternativo para a política cultural da nossa região, portanto pretendíamos ser um norte de orientações a ser seguido. Tudo isso acontecendo em um período de repressão de extrema restrições de expressões, imposto pelo regime político brasileiro que via na juventude uma forte ameaça para sua manutenção enquanto poder político.
            Todas as atividades do grupo, incluindo shows musicais, encenação de peças teatrais, palestras, atividades de recreação para crianças, entre outras, era necessário serem comunicadas à Polícia Federal sob pena de serem presos e sofrer as consequências consideradas legais da época. Dessa forma, o grupo pôde participar da campanha da anistia dos presos políticos e das tentativas de mudança de regime na esperança de trazer de volta a Democracia ao país. Nesse momento, o Laborarte foi um movimento que podia ser rotulado de revolucionário.
            Nessa época, passaram pelo Laborarte dezenas de jovens maranhenses que mais tarde foram marcos no meio cultural de São Luís, estando entre eles nomes como Tácito Borralho, Regina Telles, Cesar Teixeira, Cesar Habibe, Murilo Santos, Miguel Veiga, João Ewerton, Chico Maranhão, Laura Victor, Caroço, Nelson Brito, Josias Sobrinho, Saci Teleleu, Ivanildo Ewerton, João Otavio, Soraya e Wagner Halhadef, Rosa Reis, entre tantos outros… Com certeza, estamos esquecendo alguém que não poderíamos esquecer, mas a violação de minha memória está focada no significado coletivo e não no significado individual, como formula José Carlos Mahi (2007), no livro História Oral: Como fazer, Como Pensar, quando estuda o significado histórico de um depoimento baseado na memória.                                                                                         
            Aquele momento foi sem dúvida um momento riquíssimo em que os participantes dos grupos discutiam A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, aplicado às suas produções, com o objetivo de levar as pessoas a se posicionarem e tomar atitudes que iam além das reações de aceitar passivamente as imposições de um regime perverso como foi o emanado pelo Golpe Militar de 1964. O grupo sentia-se agente social cúmplice de seu momento histórico e assim foi procedido por muitos ao longo do tempo.                                                                                                                     
            O esquecimento do autor do enredo da Flor do Samba desenvolvido por aquela escola de samba, no carnaval de 2016, deixou vários integrantes do então Laborarte revoltados, fato que o fizeram a não aceitar desfilar pela escola. Segundo pudemos constatar, esses ex-laborartianos, que não se sentiram representados pelo enredo, não desfilaram, pois, segundo eles (em que também me incluo), não aceitaram por que o Laborarte não se limita a uma simples caravana festiva, em que se evidencia somente os atos alegres e festivos, esquecendo-se o verdadeiro significado simbólico da ação daqueles que iniciaram o Laborarte, que pode ser interpretado como movimento sociocultural que vai muito além do cacuriá.                                                             Diante do lembrado até agora, queremos nos apoiar no texto do investigador Fábio Henrique Monteiro Silva (2009, p. 18 e 19), quando afirma que “A prepotência do  presente encontra na memória uma reação contra o fugaz, contra o tornar-se nada, pois se tudo passa  permanentemente, tornamo-nos um nada. Nada fica e nada somos. A memória seria, portanto, o resguardo de um tempo que vive em constante evaporação, seria a possível reação contra a perda irreversível da nossa identidade”.
             Corroboro com Silva (2009), que diz que assim, o ato de lembrar e a sedução das lembranças tornam-se a resistência ao expurgo da nossa vivência que é constantemente jogada fora no esquecimento. Diante desta conjuntura, a memória tornou-se uma arma eficaz na luta contra a imposição do imediatismo, contra o vazio temporal imposto pelo apagamento do vivido, é a forma eficaz de manter vivas as lembranças, acendendo as luzes do passado, mesmo que este acender seja feito com um mero ato de apertar um botão no presente.                                                              
           Assim, as lembranças em relação às festas carnavalescas não podem ser trocadas como fantasias que são vestidas e logo descartadas – se isso acontecer, o folião entrará em outro bloco, o bloco do esquecimento. As lembranças devem ser evocação de vida, ou mesmo convocação da vida, pois o ato de contar é experimentar lembranças e celebrar, até mesmo na dor, aquilo que foi lembrado. Celebram-se, portanto, as lembranças de um Laborarte do passado enquanto se brinca o no carnaval do presente – que um dia também será a lembrança do passado.                                            
            Como afirma a letra do samba de Cesar Teixeira “Aquela flor, que eu joguei pela janela do tempo, resolveu desabrochar o fruto do pensamento”. Assim diz a letra do samba da Escola Turma do Quinto. Esse desabrochar do ato de pensar legitima o nosso existir, como afirma Silva (2009, p. 19). O  ato  de  lembrar  é  uma  das  maneiras  de  sermos: lembramos e logo existimos, sentimos o palpável. Por isso que, mesmo sendo o retorno dentro de uma concepção nietzschiana, o pior dos fardos a ser carregado, não compartilho com a assertiva de que o homem pode ser feliz sem a lembrança.  A lembrança é condição inefável do existir, pode ser um produto da elaboração da tristeza, mas, assim como a vida pode ser impossível sem o esquecimento, o é também sem o ato de lembrar. Mesmo que esse ato de lembrar possa ser comparado à dor daquele que vela um corpo que não mais existe; o que não pode ser compartilhado pelo olhar de Ricouer, uma vez que, para este, não há outro acesso melhor ao passado do que através da memória.                                                   
            Desenvolver um enredo baseado somente na fase atual, em que somente a festa é evidenciada, não representa aquela época de resistência e rica em produção cultural para a cidade, servindo, inclusive, de modelo para que outros grupos da região e do país, enquanto movimentos sociais e culturais se inspirassem como motivador de atuação. O Laborarte não era somente a fase festiva, do oba-oba musical, do ensinar capoeira e instigantes de ação política do saudoso Nelson Brito, nem só a alegria contagiante do cacuriá de Dona Teté, mas um movimento que extrapolou seu tempo e de seus idealizadores não podiam ficar esquecidos.                                                                   
             No roteiro da Flor do Samba nenhuma citação a esses fatos enumerados pela nossa memória, nada sobre a repressão militar, nada sobre a censura, nada sobre A Pedagogia do Oprimido, nada sobre o nascimento do movimento cinematográfico local, nada sobre a fusão musical dos ritmos populares com a música classificada como MPM, nada sobre as “descidas” à zona rural, para atender às comunidades subalternas e oprimidas sobre todos os olhares. Por isso, não desfilamos nem nos sentimos representados por aquele desfile.           
            (*) O autor é Professor Mestre em Comunicação Social e Doutorando do Programa Doutoral em Estudos Culturais na Universidade de Aveiro – Portugal.



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