João Mohana, 90 Anos
LEGADO
Poeta Arlete Nogueira Machado com o Padre João Mohana
Caderno Alternativo - Domingo - 14 de junho 2015
Caderno Alternativo - Domingo - 14 de junho 2015
Convidada no ano passado pelo Grupo Caminho do
Meio para falar sobre o Padre João Mohana, pede-me agora o referido Grupo que
publique aquela minha fala quando ele completa 90 anos de nascimento. Antes,
preciso dizer que há 20 anos, no exato dia 15 de junho de 1995, quando ele fez
70 anos, fiz encartar em um jornal de São Luís um suplemento projetado e
realizado por mim, com 52 páginas. Adianto que pretendo reeditar em forma de
livro este trabalho que lancei com a colaboração financeira de uns poucos
amigos, recolhendo artigos e ensaios, alguns já publicados, outros redigidos
por escritores fazendo questão de homenageá-lo também naquele suplemento que,
modéstia à parte, é o mais completo até então dedicado a este brilhante
intelectual brasileiro.
Foram
sete meses em que estive solitária e diuturnamente dedicada em reunir todo
aquele material, pesquisando o que ainda restava em seu poder, selecionando e
ordenando trechos de entrevistas que ele dera em viagens pelo país, separando
fotografias, enfim, trabalhando dia e noite para que pudesse materializar a
homenagem nos seus 70 anos, fazendo-o exatamente no dia desse aniversário, dois
meses antes do seu falecimento, dando-lhe sem dúvida uma grande alegria.
Buscarei ser breve sobre a atuação de João Mohana, a favor do próximo, amparado
em lúcida personalidade cultivada através da sólida cultura humanística que
fizeram dele uma figura ímpar que hoje e para sempre engrandece nossa terra.
Biografia- João Mohana nasceu em Bacabal, passando a infância em Viana,
onde já iniciava um movimento teatral e filantrópico, vindo afinal estudar em
São Luís no Colégio dos Maristas. Desde cedo talvez tivesse optado por ser
padre, mas preferiu satisfazer o pai que desejou que fosse médico, problemática
essa, da vocação, que vai aparecer no seu primeiro grande livro, O outro
caminho, possivelmente como reflexo de sua própria experiência pessoal.
Em
1949 completou o curso de medicina pela Universidade Federal da Bahia, especializando-se
em pediatria, vindo clinicar em São Luís, onde também passa a desenvolver
importante atuação como Presidente da Ação Católica, arregimentando talentos em
torno do teatro, cinema, música e literatura visando novas linguagens,
movimento efetivamente vitorioso com a revelação de nomes que depois passariam
a figurar significativamente no cenário cultural maranhense e brasileiro.
Em
1952, Mohana arrebata o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras,
com O outro caminho, romance que o projetou rapidamente no cenário nacional. A
crítica foi unânime. Cito esta de José Louzeiro: “Estamos diante de um
romancista com alma de poeta: um escritor com profundo conhecimento de
psicologia, um estilista tão completo e sutil que o coloco ao lado de Cornélio
Pena, Lúcio Cardoso, Jorge Luis Borges. O que marca a ficção deste autor é a
sua capacidade de criar personagens e, mais que isso, de fazê-los viver de
verdade. Em poucas linhas Mohana estabelece o clima, em poucos diálogos instala
o conflito. ” Esse elogio de Louzeiro é apenas um, entre muitos outros que ele
recebeu. Há os de Raquel de Queiroz, Olívio Montenegro, Tasso Silveira, Lago
Burnett, Antonio Oliveira, José Chagas, etc. De fato, O outro caminho é um
livro excepcional no universo da literatura brasileira, especialmente da
maranhense daqueles anos, um romance bem construído, seco, com estilo claro e
ao mesmo tempo denso, diálogos concisos, temática exemplar, urdidura moderna.
Segue-se
a este, Maria da Tempestade, que ganha também grande receptividade e aplauso da
crítica nacional. Antonio Olinto, grande ensaísta, diz em 1966, em O Globo:
“Seu livro Maria da Tempestade se apresenta como um dos melhores romances
lançados no Brasil na década de 50. Quando mantive, nesta seção, um setor de “A
crítica do leitor”, dois livros se colocaram na frente da preferência do leitor
brasileiro para uma matéria de crítica: Maria da Tempestade, de João Mohana, e
O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. E, curioso, ambos são livros de
turbação espiritual e de tentativa de escolha de um caminho para a vida. No
mesmo artigo, Olinto acrescenta: “Esta semana, na Feira do Livro da Cinelândia,
João Mohana, que é maranhense, enfrentou seu público para três horas de
autógrafos...” Ainda sobre Maria da Tempestade, Nilo Pereira escreve no Jornal
do Comércio de Pernambuco: “Maria da Tempestade é um romance à Dostoiewsky.
Creio que não é exagero dizer isso. Está também na linha do romance
filosófico-religioso de Octávio de Faria (...), possui certa afinidade
escatológica com a Tragédia Burguesa deste autor...”
Outra
faceta literária do escritor João Mohana é a do teatrólogo. Escreveu quase uma
dezena de peças para teatro, algumas encenadas no Maranhão e outras fora daqui.
Abraão e Sara foi montada em 1969, sob a direção de Jesus Chediak, para a
reabertura do Teatro Arthur Azevedo, naquele ano. Jomar Moura, no Jornal do
Comércio de Pernambuco, escreveu: “De tudo quanto li em 1969, foi o que me
pareceu mais belo. Abraão e Sara é teatro à moda grega, imponente, espetacular
e com linguagem carregada de beleza, drama, vigor, poesia, lirismo e até por
vezes de ingenuidade, inocência.” Três anos depois, em 1972, no mesmo Teatro,
foi a vez de encenar Por causa de Inês sob a direção de Reynaldo Faray. Clóvis
Sena, maranhense, que se radicou em Brasília, esteve antes no Rio Grande do Sul
e escreveu no Correio do Povo, de Porto Alegre: “O teatro de João Mohana – e,
no caso, Por causa de Inês – se impõe pela alta qualidade literária do texto,
somada à visualização plástica da cena, decorrente da existência dos milenários
coros”. João Mohana teve também encenada no Rio de Janeiro O marido de
Conceição Saldanha, sob a direção do grande Ziembinski. Como teatrólogo, como
vemos, Mohana recebeu merecidos elogios da melhor crítica brasileira.
Sobre seu apostolado- Através de um estilo incisivo e telegráfico a serviço da vasta
cultura, ampliada ao longo do tempo no contato com pessoas e livros, João
Mohana empenhou-se em tornar Cristo ao alcance de todos para depois não se
culpar de nada ter feito, sabendo que podia tanto com o dom que Deus lhe deu: o
uso competente da palavra escrita e falada. Mohana não era da têmpera dos que
se calam, mas da estirpe de um Paulo de Tarso. Existe um livro de sua autoria
sobre este São Paulo, chamado A Cristo por Paulo, que li sob a emoção que
sempre me despertou a vida e a obra deste apóstolo que, sem ter convivido com
Jesus, dele se fez seu mais convincente apologista, seu mais apaixonado
seguidor, somando-se ao fato de que fora, antes, o mais ferrenho dos seus
perseguidores, participando da exterminação dos cristãos, até ouvir as palavras
decisivas: “Paulo, Paulo, por que me persegues? ”
Pois
bem, gosto deste Paulo/Saulo, homem que se tornou como diz Mohana, o “modelo
inicial da Igreja que hoje se tenta reinventar”, pois “as comunidades eclesiais
de base têm em Paulo o grande inspirador” com a sua original pedagogia
pastoral, qual seja a de organizar, após as pregações, os novos cristãos em
comunidades, tornando-se o apóstolo de todos os povos através das viagens
cansativas que empreendia.
Sem
medo de cair em excessos, digo que estamos diante de um missionário tanto
quanto foi São Paulo, até pelas viagens que ambos empreendiam, Mohana,
mensalmente, através do Brasil, levando a todos uma palavra de paz e
fraternidade. Além das palestras, como meio de transmitir o cristianismo
original, como fazia Paulo, Mohana escrevia livros, como Paulo escrevia cartas.
Mohana bem poderia dizer, como o apóstolo de Tarso: “Sofro novamente as dores
do parto até ver Cristo formado em vocês. ”
João
Mohana desincumbia-se de suas múltiplas obrigações religiosas, como celebrar
missas, batizar, etc, mas o que lhe interessava mesmo era o magistério da
Palavra, o anúncio do Evangelho, a louvação da Paz, a pregação de Cristo.
Mohana, como Paulo de Tarso, não se exprimia como um poeta por retóricas ou
metáforas, nem como um filósofo ou cientista por raciocínios prenhes de teoria:
exprimia-se como um santo através da fé avalizada pelo seu assunto nuclear,
Jesus Cristo, e uma dedicação a Deus através da assistência aos homens, seus
irmãos, pela própria definição que ele mesmo fazia de que santo é o que se
dedica a Deus, e eu acrescento: a favor dos homens e da vida em seu amplo
sentido e domínio.
“É
preciso que o Cristo do cristão seja o mesmo de Paulo”, explicava Mohana,
estabelecendo um elo em que, situando-se, nos situava quando o líamos, tal como
fazia a Pedra de Héracles do Ion de Platão. Ainda que avessa, como uma mulher
de Corinto, à Cruz, eu que a tenho até no nome, concordo que a fecundidade é
ligada ao sofrimento, daí porque é preciso ser otimista no abraço à Cruz, uma
lição de Paulo de Tarso que Mohana interpretou com rara acuidade. João Mohana
sempre explicava: “quem quiser chegar ao Pai, encontre primeiro Cristo. E quem
pretenda encontrar o Cristo, procure Paulo”. Não seria exagero acrescentar que
quem quiser chegar a Paulo, leia A Cristo por Paulo, de Mohana, no qual ele é o
cirineu que caminhará conosco nesse rumo, rumo que pode soar ilusório em nossos
dias de tanta descrença a fazer eco através do imperialismo, quer seja
cultural, econômico ou político.
Um de seus livros- Impossível falar da literatura de João Mohana sem me referir à
importância do conjunto de sua obra, que inclui aquela de uma especial
evangelização. Desse seu conjunto, falarei do pequenino, mas brilhante e
necessário diga não ao imperialismo cultural, saído em 1985 com o objetivo de
sensibilizar a opinião pública em torno dos problemas dos jovens naquele que
foi o Ano Internacional da Juventude, abrindo um debate sobre as questões da
juventude. Daí tratar-se de um livro escrito com estrita preocupação didática e
com uma linguagem despojada, acessível, como foi a de Mohana, desejando
sensibilizar os jovens, como ele esclarece no livro, “muitas vezes esquecidos
ou vistos somente como massa consumidora e objetos passivos de uma sociedade
que vive sob o signo do utilitarismo cuja expressão máxima é o lucro.” João
Mohana não visava somente diagnosticar e denunciar os graves problemas que
afetavam a juventude. A partir de uma leitura honesta e séria da realidade e
dos mecanismos ideológicos, sociopolíticos, religiosos e culturais que
contribuem para depauperização dos jovens, em todas as instâncias, Mohana
desejava “apontar pistas de superação e conscientizar os jovens para que eles
mesmos sejam também sujeitos de construção para um mundo mais justo, mais
fraterno, participativo e igualitário. ”
Tudo
o que está dito acima pode parecer chavão inútil, jargão repetido; a diferença
está em que Mohana saía da simples intenção para a ação, exercendo de fato um
magistério através de sua palavra escrita e oral pelo Brasil. Agia, não ficava
no discurso, e quem tiver olhos, que veja, e ouvidos, que ouça. Por toda essa
ação e pela maneira clara, sintética e objetiva de tratar um tema que merecia
ser de conhecimento geral, principalmente dos jovens, dei Diga não ao
imperialismo cultural a meu filho, então com 14 anos, por perceber que ele o
entenderia e dele tiraria proveito, dando um “não” a esse imperialismo, receosa
de vê-lo à mercê da indústria que nos tem mantidos atrelados, até mesmo
escravizados política e economicamente às grandes metrópoles nacionais e
internacionais. Poderiam argumentar que este assunto é por demais reconhecido e
debatido, mas digo que nunca é demais insistir nele, sobretudo quando tratado
em linguagem mohaniana que prosseguia assim no seu magistério da Palavra, uma
voz que foi de paz, ainda que, embutida nela, se evidenciasse a convocação de
um verdadeiro exercício de guerra na dinâmica de uma tomada de atitude que é
preciso adotar.
Alguns
dos mais importantes, polêmicos e graves assuntos do mundo atual, ao contrário
de como vêm sendo tratados, devem ser abordados obviamente para que não entrem
apenas pelos olhos, mas pelos sentidos todos a fim de que o nosso ser e todas
as camadas sociais, por extensão, se apropriem deles para uma ingestão e
digestão necessárias. Parece que se espalha uma espécie de complô, uma intenção
generalizada, certa estratégia manipulada entre alguns comunicadores e/ou
teóricos da comunidade científica e filosófica no sentido de complicar o
tratamento de certos temas nucleares e dificultar a sua assimilação, tentando
escamotear o óbvio, parecendo fazer parte de uma empresa que chamaríamos de
indústria da ignorância.
Mohana,
no entanto, não engrossava essa fileira e seguia à risca as pegadas de Paulo de
Tarso: ele não se aproveitava de elucubrações, nada de retóricas, nem delongas,
onde era exigida a clareza, onde se fazia necessário o esclarecimento. Era
incisivo, contundente, para atingir o objetivo que foi o de sua vida: despertar
o ser humano através do fenômeno crístico para o desenvolvimento de uma
legítima personalidade libertadora.
É,
pois, oportuno lembrar o serviço que Mohana vem prestando (quase digo, que ele
prestou, pois seus livros encontram-se esgotados, convindo reeditá-los) às
comunidades com mais de 50 obras publicadas e centenas de palestras realizadas
em muitas cidades brasileiras como se fora o seu último apóstolo sob o signo de
um tempo dessagralizado e sob o jugo de um imperialismo cultural, como alertou
o Papa Paulo VI, em que “o homem pode organizar o Mundo sem Deus, mas só o
organizará contra o próprio homem.”
João
Mohana sabia dessa verdade, daí a rica e valiosa pregação cristã, embutindo
nela, principalmente, a necessária defesa da família que resumiu no
extraordinário sentido desta frase que conversando comigo proclamou,
pedindo-lhe eu que a escrevesse do próprio punho para que pudesse aproveitá-la,
como aproveitei, na contracapa daquele Suplemento de 1995 que então eu
organizava para homenageá-lo. A frase é esta: “Há coisas que só pai e mãe podem
dar aos filhos. Se eles não derem, ninguém dará.” Um precioso sinal de alerta
para os nossos dias quando ele completa 90 anos.
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